sábado, 11 de junho de 2011

Resenha: VAPORPUNK - RELATOS STEAMPUNK PUBLICADOS SOB AS ORDENS DE SUAS MAJESTADES

(Originalmente postada no extinto blog Gotas Humanas)

A estética steampunk vem ganhando destaque em todo o mundo. Aqui no Brasil, algumas antologias dedicadas ao gênero - que procura extrapolar certas possibilidades tecnológicas do século XIX (principalmente) e imaginar cenários provocados por um crescimento tecnológico prematuro - já foram lançadas e há outras sendo produzidas. O eixo principal é o das editoras Draco, Tarja Editorial e Estronho, esta última inclusive recebendo textos para uma coletânea steampunk exclusivamente feminina (meninas, fica a dica).

O diferencial da "Vaporpunk - Relatos Steampunk Publicados Sob as Ordens de Suas Majestades" (Draco, 312 páginas) é o tamanho dos textos que a compõem. Tem-se aqui apenas um conto, seguido de sete noveletas, narrativa maiores, onde o gênero teoricamente pode ser tratado com mais profundidade. Lançada em 2010 e contando com a participação de cinco autores brasileiros e três portugueses, a "Vaporpunk" deu prioridade a textos que se passassem no Brasil ou Portugal, explorando o passado (re-imaginado) dessas nações.

Foi minha primeira visita ao gênero, de modo que não serei capaz de julgar se as noveletas se mantiveram fiéis a proposta steampunk. Para isso, recomendo que leiam a resenha do Antônio Luiz, no skoob. Falarei apenas do que gostei e do que não.

1) A Fazenda-Relógio, de Octávio Aragão.

Trata-se do único conto da antologia, que começa bem. Na trama, autômatos a vapor são trazidos para otimizar o trabalho numa fazenda cafeeira, provocando a ira de escravos dispensados a própria sorte, que decidem partir para o ataque e tomar o controle.

Sendo uma narrativa menor e mais dinâmica, faz todo sentido que seja a primeira do livro. Apresentando de forma competente o gênero, o conto é recheado de ação e pinta um cenário de História alternativa realmente intrigante, algo sombrio, onde a chegada da tecnologia realmente representa uma mudança no status quo. Destaque para a cena final, adequadamente surreal, que encerra o texto de maneira satisfatória e dá o tom do que virá a frente na antologia.

O único defeito, por assim dizer, é justamente o tamanho. Fica a impressão que havia mais história para contar, mais a dizer, principalmente sobre o pano de fundo político apresentado. De todo modo, um ótimo conto.

2) Os Oito Nomes do Deus Sem Nome, de Yves Robert.

O cenário da noveleta é a Portugal do final do século XIX, às voltas com rumores de guerra.

Na Europa re-imaginada por Robert, há três potenciais principais: A Inglaterra, com seu desenvolvimento tecnológico movido a vapor, a França, calcada na hipnologia (conjunto de técnicas que permitiu grande avanço nas faculdades mentais, possibilitando telepatia e telecinese) e Portugal. A trama segue um grupo de espiões que tenta descobrir o que está por trás do crescimento desenfreado da nação portuguesa, um segredo guardado a sete chaves.

Apesar dos personagens um tanto caricatos, a trama consegue prender. Yves Robert é competente em apresentar o palco geopolítico dessa Europa fictícia, sem exagerar na exposição ou soar superficial. Torna-a convincente, apesar de visivelmente absurda. A noveleta abraça o sobrenatural - o que é mostrado logo na cena de abertura - e conta com um dos finais mais marcantes de todo o livro.

Mas há pecadilhos, aqui e ali. Determinada passagem, em que os personagens devem invadir certo local, pareceu-me confusa. Fica difícil compreender quem está entrando por onde, em que cômodo se está. Mas nada que comprometa o resultado final.

3) Os Primeiros Astecas na Lua, de Flávio Medeiros.

Essa é a noveleta que mais contém referências literárias, o que representa seu maior problema.

Um agente duplo inglês a serviço da rival França é enviado com a missão de descobrir de que ponto do vasto território dominado pela coroa britânica será lançado um foguete que levará à Lua um grupo de astecas (!), império aliado dos ingleses.

Como dá para notar pela sinopse absurda, não se procura aqui nada mais que entretenimento descompromissado, e nesse sentido, não se pode dizer que Medeiros não entrega o que promete. Por outro lado, o fascínio do autor ante a possibilidade de encher suas páginas com o maior número possível de personagens da literatura do século XIX torna o texto uma salada de referências que pode causar estranheza ao leitor. Por mais que seja divertidíssimo ver H. G. Wells como ministro das ciências da Inglaterra medindo forças contra Júlio Verne, ministro das ciências francês, e o inspetor Lestrade, coadjuvante de várias histórias de Sherlock Holmes, às voltas com o caso do Jack, o Estripador, não se pode negar ocorrem diversos exageros que enfraquecem a noveleta como um todo. Mesmo a preocupação de Medeiros em explicar os motivos que levam seu protagonista (e narrador) a trair a própria pátria é perpassada pelas tais referências, o que acaba por torná-los pouco convincentes. O autor peca também pelo final um tanto abrupto.

Um texto divertido, mas não muito mais que isso.

4) Consciência de Ébano, de Gerson Lodi-Ribeiro.

Organizador brasileiro da "Vaporpunk" (ao lado do português Luis Filipe Silva), Lodi-Ribeiro entrega um de meus textos favoritos da antologia.

Num Brasil alternativo e dividido em três territórios, o Brasil português tradicional, o Recife dominado por holandeses e a República de Palmares, nação negra independente, um agente a serviço de uma agência secreta palmarina decide exterminar a arma secreta que por vezes garantiu a soberania de seu povo: um filho-da-noite, criatura que dotada de capacidades sobre-humanas e que precisa alimentar-se de sangue para viver (sim, um vampiro).

A ambientação é impecável, e o autor constrói de forma fascinante as particularidades da República de Palmares, tanto nos costumes quanto na linguagem. Provavelmente a noveleta mais violenta do livro, e a em que a tecnologia tem valor menos determinante, o que não retira nada de seu brilho.

E realmente não há muito mais o que dizer. Trata-se um texto de encher os olhos.

5) Unidade em Chamas, de Jorge Candeias.

Sem reservas, o ponto alto da "Vaporpunk". É também o texto que mais recua no tempo, situando-se no século XVIII. Na trama, um regimento de passarolistas portugueses tem pôr os preconceitos de lado quando um grupo de soldados negros se junta ao principal.

"Unidade em Chamas" se destaca principalmente pelo crescimento de seu protagonista, Sidónio, a meu ver. De todos os textos da antologia, este é o que provavelmente o que apresenta o personagem mais humano e interessante. O autor dá tanta importância a ele quanto ao funcionamento da passarola, máquina voadora movida a gás operada pelo regimento do qual Sidónio faz parte. A tensão racial é bem construída, não soando forçada, as descrições do funcionamento das passarolas e da rotina dos soldados nunca são cansativas, e as cenas de batalha são narradas de forma hábil. A prosa de Candeias ao longo do texto é fluida e agradável, verdadeiramente singela em alguns momentos, principalmente o final. De longe, o meu favorito.

6) A Extinção das Espécies, de Carlos Orsi.

Um jovem naturalista (que, embora nunca saibamos o nome, fica claro ser Darwin) descreve num diário seus dias no Brasil, onde conhece um misterioso Fabricante de Autômatos, e numa Argentina alternativa, onde pesquisadores europeus aplicam alta tecnologia na luta contra os indígenas.

Bastante sombria, a noveleta também apresenta algumas referências literárias, utilizadas de forma competente. Mas o destaque fica mesmo com os avanços tecnológicos. E tenho que admitir que tive bastante dificuldade em acreditar no cenário criado por Orsi, em que a nanotecnologia já era possível e autômatos conseguiam se reproduzir a partir de material orgânico (no século XIX, é bom lembrar). Diferentemente da noveleta de Flávio Medeiros, que apresenta absurdos maiores mas não se leva muito a sério, aqui o autor não tem comportamento semelhante, e as extrapolações acabaram soando um pouco exageradas demais em minha opinião - embora descritas sempre de maneira competente, não sendo complicado entender o funcionamento dos autômatos ou a utilização da energia solar. Por outro lado, as discussões sobre a natureza da mente e sobre criação versus simulação da vida são intrigantes. Um bom texto.

7) Os Dias da Besta, de Eric Novello.

A menor entre noveletas se passa num Brasil alternativo, onde Dom Pedro II investe pesado em pesquisas tecnológicas e a princesa Isabel dirige um planador, e dois homens a serviço do imperador investigam o aparecimento de uma criatura metamorfa no Rio de Janeiro.

O texto tem um quê de conto policial, e um clima quase noir que me agradou bastante. Novello utiliza certos fatos de nossa História - como a questão Christie e o pano de fundo político da guerra do Paraguai - para montar a trama, mas procura não se prender excessivamente a eles, apresentando um texto descontraído e dinâmico, com boas cenas de ação e um humor sempre presente.

8) O Sol é que Alegra o Dia..., de João Ventura.

Sem dúvidas o texto que menos me agradou.

Protagonizado por um personagem que realmente existiu, o padre Manoel António "Himalaya" Gomes (apelidado assim devido a grande estatura), a noveleta acompanha sua vida desde o seminário até o leito de morte, pontuando várias invenções para as quais teria contribuído, sempre explorando o potencial da energia solar.

O fato é que a noveleta de Ventura não apresenta qualquer conflito, e mesmo a "ameaça" representada pelos grandes empresários, nem um pouco interessados em perder mercado para a difusão da energia solar, não consegue cumprir esse papel pois o autor logo a resolve. Embora a figura de Himalaya seja marcante, isso não foi o suficiente para manter o interesse, e o texto acaba se tornando desinteressante. E as constantes menções de Ventura ao funcionamento dos mecanismos citados não ajuda, pois o autor não foi hábil para descrevê-los de maneira compreensível.

Apesar de não terminar da melhor das maneiras, a "Vaporpunk", no geral, me agradou bastante, assim como o steampunk.

Boas leituras.

Um comentário:

Jogue tomates.

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