sábado, 11 de junho de 2011

Resenha: A BATALHA DO APOCALIPSE - Eduardo Spohr

(Originalmente postada no extinto blog Gotas Humanas)

Os anjos são os novos vampiros. Fato. Depois da explosão de romances protagonizados por sugadores de sangue que se seguiu ao enorme sucesso da série escrita pela americana Stephenie Meyer (que eu duvido que você não saiba qual é), são os alados celestiais que agora se destacam no cenário da literatura de entretenimento (caso duvide, dê uma olhada na estante de lançamentos da livraria mais próxima). No entanto, “A Batalha do Apocalipse” (Verus, 587 páginas) parece se diferenciar dessa nova safra de romances angélicos, que chega basicamente na garupa dos vampirescos, com o que parece ser uma fórmula bem parecida. Escrito há cinco anos, antes da febre Crepúsculo, o romance de estréia de Eduardo Spohr ganhou um prêmio literário e passou a ser lançado de forma independente, alavancado pelo sucesso do Nerdcast (podcast que recomendo altamente) e alcançando vendagens expressivas. Agora, pode ser encontrado em todas as livrarias do país, figurando em diversas listas de mais vendidos, o que não deixa de ser uma boa mostra do que a literatura de entretenimento brasileira pode alcançar.

Bem, nem tudo são flores, óbvio. “A Batalha do Apocalipse” pode ter um carrilhão de pontos fortes, mas os fracos estão lá, e não tão discretos assim. Trata-se, no geral, de um bom romance, bem escrito e muitíssimo criativo, muito embora esteja longe de ser as mil maravilhas apontadas pelo escritor José Louzeiro na quarta capa do livro.

Como o título já informa, a linha narrativa principal desenvolve-se à aproximação do dia do ajuste de contas, a grande batalha entre céu e inferno que definirá o futuro de anjos, demônios e homens. Ablon, um celestial renegado, expulso do céu por rebelar-se contra a tirania do arcanjo Miguel, recebe um convite para juntar-se às hordas infernais de Lúcifer na batalha final. Enquanto isso, a humanidade aproxima-se da Terceira Guerra, apressando o soar das trombetas que marcam a aproximação do Apocalipse.

A grande verdade é que o livro é uma salada. Os relatos judaico-cristãos certamente compõem o fio condutor da história, mas figuram ao lado de uma infinidade de outros. No universo de “A Batalha do Apocalipse”, as muitas mitologias não se anulam, de modo que deuses celtas, dragões, fadas, elfos, feiticeiros e espíritos ancestrais convivem perfeitamente com as figuras cristãs de Deus e do diabo. O autor utiliza as muitas tradições religiosas e suas histórias para povoar diversas dimensões paralelas, o que lhe confere uma fonte quase inesgotável de personagens e linhas narrativas possíveis. Nesse sentido, o livro lembra muito certos jogos de RPG, que seguem linhas semelhantes na construção de seus universos.

As semelhanças com os Role Playing Games não param por aí e estendem-se aos próprios personagens, seja em sua divisão em classes, cada uma com características diferentes – querubins são guerreiros, ishins controlam elementos da natureza, serafins tem habilidades psíquicas – até suas ações em si. Em sua grande maioria, Eduardo Spohr os condena às duas inclinações mais básicas: bem e mal. Trata-se de um maniqueísmo que serve perfeitamente aos propósitos da narrativa, que realmente fundamenta-se na luta entre estes lados opostos, mas certamente limita seus personagens a duas facções que nem sempre são tão facilmente discerníveis. Em se tratando de anjos e demônios, essa questão se torna ainda mais obscura, já que por inúmeras vezes afirma-se que estas duas categorias de seres não têm livre-arbítrio (dádiva concedida apenasaos homens), agindo, portanto, de acordo com suas “naturezas”. Ora, tem-se aí uma grande contradição, já que, se assim fosse, as duas rebeliões de anjos nunca deveriam ter acontecido. De fato, todos os anjos deveriam ser criaturas “boas”, uma vez que foram criadas por Yahweh, estandarte supremo da ordem, bondade e justiça. A falha de lógica reside nas muitas demonstrações de maldade angélica, que implicam necessariamente em escolhas à nível moral, impossíveis sem o livre-arbítrio. Tal questão acaba passando de largo, sem que haja uma explicação convincente.

Uma boa sacada do autor foi incluir, paralelos à narrativa principal, relatos da vida pregressa de Ablon na Terra, que vão desde a construção da Torre de Babel até a morte de Cristo, ajudando a desenvolver o personagem e seu amor pela justiça ao longo dos tempos. Shamira, a Feiticeira de En-Dor, figura recorrente nesses relatos, forma com o anjo renegado um casal curioso, já que o contato físico entre ambos é quase inexistente, embora os sentimentos que nutrem um pelo outro sejam claros e se mantenham os mesmos com o passar dos séculos. Assim, Ablon e Shamira surgem como típicos heróis, justos e bons, que obviamente farão tudo um pelo outro. Unidimensionais, sem deixar de ser convincentes.

Mas uma infinidade de outros personagens cruza as páginas de “A Batalha do Apocalipse”, alguns, é óbvio, recebendo melhor tratamento por parte de Spohr. É o caso dos anjos Aziel e Sieme e dos demônios Orion e Amael, estes dois últimos conseguindo surpreendentemente inspirar simpatia, apesar de serem o que são. Já o anjo caído Apollyon surge como a nêmesis estereotipada de Ablon, enquanto Miguel faz o papel do tirano cruel e intransigente. O arcanjo Gabriel, por outro lado, talvez seja o mais tridimensional dos personagens, e foi de longe o meu favorito.

A narração de Spohr é envolvente, o que impede que o livro se torne cansativo mesmo com suas quase 600 páginas. As cenas de ação são habilmente descritas e convincentes em sua grande maioria, acentuando o clima épico do romance. O autor falha, porém, em muitos dos diálogos, que parecem saídos diretamente de desenhos japoneses. A cena em que determinado personagem explica a seu adversário tintim por tintim como conseguira resistir a seus ataques, por exemplo, é tão artificial que ficaria perfeita em num episódio de Cavaleiros do Zodíaco. Da mesma forma certos diálogos entre Ablon e Shamira são de uma pieguice sem tamanho, e outros apresentam intervenções desnecessárias e incrivelmente expositivas. Nada que atrapalhe o entretenimento, no entanto – apenas creio que seria mais indicado confiar um pouco mais no leitor.

Sustentando um clímax de quase 80 páginas sem deixar a peteca cair, “A Batalha do Apocalipse” conta com algumas reviravoltas muito bem amarradas, e fecha com um final bastante enigmático, o que torna perdoáveis os erros da narrativa. Eduardo Spohr sai-se bem em sua estreia, com uma obra fantástica de qualidade, entretenimento de um tipo difícil de encontrar por aí. Vale a pena.

Boas leituras.

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