sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Resenha: IMAGINÁRIOS VOLUME 4


Este quarto volume da série “Imaginários”, da editora Draco, foi um dos muitos lançamentos que chegaram ao público durante a quinta edição do Fantasticon, Simpósio de Literatura Fantástica ocorrido entre os dias 12 e 14 de agosto em São Paulo. Novamente no papel de organizador esteve Erick Santos, editor da Draco, repetindo o duplo papel exercito no terceiro volume da série, já resenhado aqui (triplo, uma vez que também há um conto seu no livro). Reunindo autores em sua maioria conhecidos dentro do fandom do gênero fantástico brasileiro, a coletânea repete a qualidade do volume anterior, elencando textos que passeiam entre as muitas temáticas possíveis do terror, fantasia e ficção científica.

Vamos a um breve comentário sobre os contos da “Imaginários Volume 4”.

O cão – Leonel Caldela (@leonelcaldela)

O conto de abertura nos apresenta um cenário de fantasia onde humanos convivem em constante tensão com fadas – ou seres feéricos, como também são chamados. O filho de um duque humano narra suas aventuras ao lado do melhor amigo, um cachorro, da infância à maioridade, numa vida pontuada por encontros com os misteriosos lordes feéricos. Texto muitíssimo bem escrito, rico em descrições e ótimo no que diz respeito ao desenvolvimento do protagonista-narrador. O autor opta por não fornecer explicações para certos dados e acontecimentos – nunca fica claro o porquê de as fadas não serem capazes de criar, por exemplo, o que as prende num ciclo de cópia do que é humano –, o que apenas salienta o caráter fantástico e misterioso da trama. O desfecho honra todo o bom desenvolvimento – a cena final é particularmente impactante –, embora certa decisão tomada pelo protagonista aconteça de maneira um tanto gratuita, sem que seja possível entender sua motivação. Uma falha pequena num conto de grande qualidade.

Ela – Fábio M. Barreto

Um misterioso ser – a Ela do título – chega a um planeta inabitado com a missão de analisa-lo e povoa-lo de acordo com as condições apresentadas por seu ambiente. Longe dali, os últimos sobreviventes de um planeta em ruínas tentam desesperadamente escapar de seus perseguidores, uma raça alienígena impiedosa que não descansará enquanto não exterminá-los por completo. As duas narrativas correm em paralelo, com maior ênfase na primeira, que impressiona pela atenção dispensada pelo autor à complexidade do planeta. Também é importante para a trama a descoberta, por parte d’Ela, de sentimentos que até então só conhecia como conceitos, à medida que faz previsões sobre possíveis futuros naquele ambiente onde florescerá vida. Trata-se de um texto relativamente curto, embora a prosa encorpada do autor chame a uma leitura mais lenta e atenciosa, sem transformar o conto numa experiência arrastada ou enfadonha.

O Anel e a Pérola Solitária – Georgette Silen (@georgettesilen)

Moira, desde sua infância, se vê cercada por estranhas vozes que só ela consegue ouvir. Com quinze anos recém completos e uma estranha vontade de liberdade e contato com a natureza, a adolescente presencia um estranho fenômeno quando é atacada pelo valentão do colégio, e a partir daí começa uma teia inimaginável de descobertas. O conto tem um tom claramente infanto-juvenil, apresentando alguns dos principais elementos que comumente são associados à histórias direcionadas a essa faixa etária: a descoberta da identidade, a sensação de não pertencimento, repressão e bullyng sofridos sem motivo. A autora é bem sucedida ao retratar as mudanças – obviamente mágicas – sofridas por Moira ao longo do conto, descrevendo-as numa prosa ágil e elegante; peca um pouco, a meu ver, no uso excessivo dos pontos de exclamação, que parecem a todo momento querer reforçar um clima fantástico que já está lá. Não compromete o conto como um todo, no entanto.

Primeiro de Abril: Corpus Christi – Luiz Bras

De longe o conto mais doido da antologia, e digo isso no bom sentido. A trama – o que mais se pareceria com uma – segue um grupo de ciborgues em meio ao colapso de uma cidade que se tornou consciente e agora age por conta própria. O grande barato do texto é marcadamente a prosa, elemento que o destaca em relação aos outros textos da coletânea. É bastante difícil entender o que realmente está acontecendo nas páginas, de modo que, em certo momento, o leitor tende a abstrair esse detalhe e embarcar na experimentação do autor. Como ponto fraco, eu apontaria uma certa incompletude do texto, que desperta mais perguntas que respostas ao final da leitura.

Névoa e Sangue – Nazarethe Fonseca (@NazarethFonseca)

Os vampiros não podiam deixar de dar as caras. Na história ambientada na era vitoriana, um rico chupador de sangue desenvolve uma extrema obsessão por uma criada, Mary, que obviamente desconhece as necessidades sanguinolentas de seu patrão. O conto apresenta vampiros à moda antiga, do tipo que não tem escrúpulos quanto a matar para se alimentarem – nesse sentido, é uma sacada bastante irônica da autora batizar o vampirão protagonista de Edward. A obsessão, veículo condutor da narrativa, não me pareceu bem construída; nunca conseguimos entender realmente o que Mary tem que excita tanto seu empregador-vampiro. O texto não tem grandes atrativos, mas também não apresenta falhas monumentais. Divertido, pouco mais que isso.

O Incrível Congresso de Astrobiologia – Cris Lasaitis (@crislasaitis)

Nesse breve conto – o menor da coletânea –, a autora do bacaníssimo “Fábulas do Tempo e da Eternidade” (já leu minha resenha?) apresenta a bióloga Lima C., convidada para o MCXI congresso de Astrobiologia por seres que nunca sabemos realmente quem são. Trata-se de um texto simpático e imaginativo, quase todo conduzido (e bem conduzido) em segunda pessoa, que versa sobre a pequenez humana em relação ao universo. Para ser lido de uma vez só.

Brazil Reloaded – Antonio M. C. Costa (@ALuizCosta)

Ambientado nos Estados Unidos décadas no futuro, o conto segue o ex-presidiário Jamal, que se envolve numa situação fora de controle após aceitar fazer um arriscado serviço para uma célula política radical. O texto de ritmo ágil é o mais recheado de ação entre todos os da coletânea, embora esta nem sempre soe convincente. Por outro lado, o cenário criado pelo autor é curiosíssimo: nele, os EUA são tudo menos a potência de hoje, e países como Brasil e China ocupam o lugar antes pertencente aos yankees. Há momentos divertidos, sobretudo quando entra em cena o capitão Nascimento – qual semelhança com aquele capitão Nascimento é mera coincidência, ou não –, que trás boas doses de brasilidade à narrativa.

Bons Inimigos – Claudio Brites (@claudiobrites)

Um dos textos mais complexos do livro. A narrativa não linear se concentra em três desconhecidos que um dia acordam num ambiente fechado, juntamente com um cadáver que inicialmente não se sabe quem é. Através de flashbacks vamos entendo, bem lentamente, o que os levou àquela situação. Texto muitíssimo bem conduzido, prosa sólida e estilosa, trama sombria e carregada de suspense. O único problema, a meu ver, é a narrativa paralela, que acompanha uma tribo de índios durante a complexa preparação para um ritual de execução. O final causa dúvida e estranheza, pois não se enxerga ligação direta entre as duas, além de certa semelhança temática, o que pode tornar a experiência um pouco decepcionante para alguns. Abro o parêntese, no entanto, para um possível não entendimento da minha parte.

A Chave – Renato A. Azevedo

Uma ciber-mercenária em missão a mando de um ciber-mafioso se lança contra diversos ciber-inimigos numa ambiente virtual que pode ser fatal. Conto de pegada ágil e bastante divertido. A trama vai ganhando novos contornos e proporções, e o que se pensava simples vai se mostrando mais e mais complexo. O autor peca, no entanto, na condução dos diálogos, excessivamente expositivos em sua maioria, e também em certa cena de ação que envolve uma corrida de motos, que, apesar de muito bem escrita (sugando elementos dos videogames), não acrescenta muito à trama. Os personagens são estereotipados e os caras maus são maus e pronto. O texto fica melhor do meio para frente, quando as primeiras reviravoltas surgem. A reviravolta final, no entanto, me pareceu um tanto forçada.

O Turista – Erick Santos (@ericksama)

O editor da Draco faz sua estreia como autor num conto que, junto com o de Brites, forma uma dupla e tanto. A narrativa em forma de quebra-cabeças acompanha um homem em suas andanças na Europa, enquanto lida com algumas mulheres e as próprias lembranças. É o tipo de texto que convida, ou melhor, clama por uma segunda leitura para que se consiga encaixar as peças em seus devidos lugares, destacando-se também pela escrita seca e carregada de melancolia. O autor realmente consegue delinear o isolamento do personagem e mergulha o leitor na neura de descobrir, afinal de contas, o que está acontecendo com ele. O que não é tarefa simples, dada a não linearidade e a fragmentação do texto. Esperemos que o editor se aventure mais vezes como autor.


É isso.

Boas leituras.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Conto: TARDE DEMAIS PARA ESQUECER - Final

4

A quitinete estava em total desordem. O quarto era grande o bastante para conter a cama de solteiro, uma escrivaninha sobre a qual repousava um notebook, alguns livros e um cinzeiro lotado; uma cômoda de madeira que já conhecera dias melhores, uma televisão de 14 polegadas no canto e uma estante baixa, cujas prateleiras abarrotadas atraíram a atenção de Amarante. Era uma baderna: as gavetas estavam abertas, camisas, calças, cuecas espalhadas pelo chão.

O fotografo explorava novos ângulos, e a câmera pipocava em flashes de tempos em tempos. Foram batidas fotos do ferimento à bala, da arma abandonada em meio ao sangue, das manchas vermelhas que jorraram na parede. Amarante e Pedro observavam do limitar da porta, aguardando o momento em que poderiam abrir gavetas, remexer roupas, procurar por pistas sem contaminar a cena do crime.

Amarante conversara longamente com a mãe de Vinícius, Margarida. A voz dela fazia ecoar alguma lembrança distante que ele não procurou avivar. Foi objetivo. A mulher estava atônita, falando rápido demais, temendo que estivessem de alguma forma constrangendo seu filho; ele a tranquilizou. Em seguida, recolheu o máximo de informações que pôde.

Valter era sobrinho da mulher, filho de uma irmã mais velha que morrera de câncer e um pai que ninguém jamais soube quem era. Ela o criara desde seu quarto ano de vida, e Valter tinha seus dezoito quando o falecido marido de Margarida lhe deu seu primeiro e único filho legítimo, Vinícius.

Valter tivera uma infância e uma adolescência problemática. Saíra de casa para morar sozinho aos 20, mas voltaria seis anos depois. No meio tempo em que estivera fora, a quitinete nos fundos fora construída, e ele passou a morar ali, mediante aluguel. Passara um tempo entrando e saindo de vários empregos, mas há alguns anos se estabelecera naquela coisa de negociar livros velhos; saía pelos sebos da cidade à caça de alguma edição rara que se passasse por velharia, adquiria-a e então a repassava para colecionadores ou mesmo outros vendedores por uma quantia superior àquela que pagara inicialmente. Vinha conseguindo se manter, ao menos.

A mulher não vira muito o sobrinho nos últimos dias. Segunda ela, mantivera-se no quarto na maior parte do tempo, ou então estava fora. Esclareceram também que Margarida saíra de casa por volta das seis, deixando a janta pronta; Valter estava vivo nesse horário, pois despedira-se dela. Não notara nada de estranho ou anormal no comportamento do sobrinho. Em dado momento da conversa, ela começou a soluçar de choro.

Combinaram que Margarida falaria com o delegado pela manhã. Amarante não estaria à frente do caso, uma vez que era apenas o investigador de plantão. Quando se despediram, o pranto da mulher prosseguia.

César, da balística, franziu o cenho enquanto olhava para dentro da primeira gaveta da cômoda. Então chamou o outro e pediu aquilo fosse fotografado. Amarante e Pedro se aproximaram.

Bem no canto, ao lado de um pequeno amontoado de camisas bagunçadas, havia um cofre de ferro cinza, sua tampa aberta escancarando o interior vazio. Os quatro homens se entreolharam.

“Hum,” fez Pedro. “O cara entra, ameaça o tal Valter com a arma, pega o que está aqui dentro, dá o trabalho por encerrado e, antes de sair, bum, atira no cara. Isso, ou o assassino sabia a combinação.”

César apontou para a parada oposta.“Ele pode muito bem ter entrado por aquela janela ali.”

“Pode. Dá num terreno baldio. O cara só teria que ser bem ágil,” disse Amarante.

“E não muito grande. Bom, mas isso não é comigo. O que eu posso dizer é que não achei capsula nenhuma, o que só confirma o óbvio. O assassino usou aquela mesma trinta-e-oito semiautomática bem ali. O ferimento é compatível com o estrago que esse tipo de arma faz. Só falta saber por que deixou a arma aqui.”

O fotografo terminara e ofereceu um par de luvas para cada um dos policiais, que cingiram as mãos de borracha branca. A primeira coisa que Amarante fez foi pegar o celular de Valter e checar as últimas ligações. Segundo constava, a última ligação executada pelo morto ocorrera às 21:12 da noite passada. Pedro sacou o próprio celular do bolso e copiou o número exibido na tela do aparelho de Valter.

“Vamos ver se damos sorte.” Esperou com o telefone colado ao ouvido, mas ao cabo de um minuto, desistiu, dando de ombros. “Tentamos de novo mais cedo.”

Todas as gavetas haviam sido reviradas. Amarante não encontrou nada mais que chamasse sua atenção na cômoda e passou os olhos pelo restante do quarto. Nas gavetas da escrivaninha, mais livros velhos, um ou outro DVD pornô, moedas.

Amarante parou ao pé da cama e olhou novamente para o corpo. A época, calculou, era a mesma. Talvez um dia eles tivessem estado juntos naquela vila, quem sabe disputando quem tinha a maior coleção de bolinhas de gude, ou jogando bola, sendo crianças. O tempo passa e faz esquecer. Olhou para a janela. Sim, era perfeitamente possível entrar por ali. Pela desarrumação no quarto, alguém estivera procurando por algo, o que indicava uma possível motivação para o crime; o cofre vazio a fortalecia. Latrocínio? Era o que parecia, mas ele não estava convencido.

“Se ele tinha a arma e o dono do quarto juntos, por que a bagunça?” Pedro olhou para ele. “Ele ameaçou o cara para que abrisse o cofre; tudo bem, isso parece lógico. Mas por que as roupas estão remexidas dessa forma?”

“Como assim?”

“Ele tinha o cara nas mãos. Era só manda-lo entregar o que tinha de valor, e pronto. Quer dizer, a vítima devia saber onde estavam as coisas no próprio quarto. Iria diretamente a elas. Não precisaria procurar, certo?”

Pedro refletiu sobre aquilo.

“Bem, teoricamente não. Mas o cara pode ter ficado nervoso. Acontece quando tem uma arma apontada pra sua cara.”

Amarante coçou a cabeça. “Pode até ser. Mas... não sei. Será que o garoto sabe o que tinha dentro desse cofre?”

5

Pancadas na porta. Vinícius se assustou. Abriu os olhos debaixo da coberta com a firme sensação de que era ele. Que ele tinha voltado para cobrar-lhe algumas explicações. Por que você não está triste por mim, Vinícius? Pensei que fôssemos melhores que isso. Pensei que fôssemos amigos especiais.

Amigos especiais. Ele não o ouvia dizer aquilo há anos, mas as palavras soaram nítidas e próximas em sua memória. Novas batidas. O momento de temor passou. Ele cambaleou da cama e abriu a porta.

“Você me acordou.”

Era o tal Augusto. Ele o mediu de cima a baixo, a cara fechada. “Seu primo tinha um cofre. Ele está aberto e vazio dentro de uma das gavetas da cômoda. Sabe o que tinha dentro?”

“Hum,” fez Vinícius, soltando um bocejo. “Cofre?”

“Um cofre cinza, leve, pequeno. Você nunca o viu?”

“Não. Nunca vi.”

O investigador tencionou os lábios, com um pouco de irritação.

“Sabe se ele guardava dinheiro ou alguma outra coisa de valor no quarto? Ele tinha carteira, cartões de crédito, talões de cheque?”

“Devia ter, eu não sei, ele não ficava me mostrando. Olha, a única coisa valiosa lá em cima são aqueles livros velhos que ele vendia, pelo que eu sei. E ainda assim nem todos. Era disso que ele vivia. Escuta, posso dormir em paz agora?”

Os olhos de Augusto se estreitaram por baixo das sobrancelhas espessas e seu semblante grave pareceu se adensar. Ele fez um gesto de cabeça, deu as costas e se foi, calado e sombrio. Vinícius fechou a porta e voltou a se jogar na cama.

Amigos especiais, dissera Valter. Fazia muito tempo. Vinícius se encolheu sob a coberta e cerrou os olhos. Mentira acerca da arma porque não queria se envolver. Valter estava morto. Isso o alegrava. Sequer se perguntava quem o teria feito. Não se importava. O que passou, passou, e tudo que ele tinha de fazer era viver com isso. Procurar esquecer. Sobre Valter, sobre sua infância com ele, sobre o que nunca devia ter feito. Trancar essas memórias numa sala a prova de som e jogar a chave fora. Custasse o que custasse.

6

“Já pensou na possibilidade de ele ter levado algum dos livros?” Pedro despejou assim que Amarante subiu novamente.

“Por que diz isso?”

“Bem, tem alguns pontos nas fileiras em que o espaço entre um livro e outro é bem maior que o comum. Pode não ser nada. Só chamou minha atenção.”

“Se isso aconteceu,” disse Amarante “não foi um assalto comum. Um cara tem que saber pra quem vender livros como esses, não é a coisa mais fácil do mundo. Se algo daí realmente foi levado, o assassino deve ser desse meio, ou ao menos saber um pouco sobre o ramo.”

O fotografo prosseguia com seu trabalho. Amarante aproveitou para ir ao banheiro. Jogou um pouco de água no rosto e se olhou no espelho. Achava que Vinícius estava escondendo alguma coisa, e nem precisava perguntar para saber que Pedro partilhava dessa opinião. Mas se viu pensando novamente em Valter e na forte possibilidade de tê-lo tido como um colega de infância. Aquilo o incomodava, não exatamente por ele estar morto, mas por ter iniciado algo dentro de sua mente. Começara com discreta lentidão, mas após a conversa de ainda há pouco com Vinícius, sua memória estava pulsando. Algo queria saltar do esquecimento e mostrar o rosto. Amarante ainda não conseguia discernir o que era, mas achava que em algum momento irromperia.

Lembrou que na sala, lá embaixo, havia um móvel com diversos porta-retratos. Pediu licença e desceu novamente. Era tarde e ele não se sentia cansado. Era estranho, mas estava aceso, tenso. Aproximou-se das fotografias amareladas pelos anos, correndo os olhos pelas imagens.

Não demorou muito para encontrar o que procurava: uma fotografia de Valter, criança. Então algo em Amarante se agitou. E ele viu.

O choque o fez estender as mãos trêmulas para pegar a foto que mostrava o menino sorridente com uma bola debaixo do braço. Aquele rosto inocente e alegre trouxe tudo de volta; desenterrou o escondido, escancarou o armário e revelou seus esqueletos.

Amarante lembrou-se de Valter. De sua tia, a quem ele chamava de mãe, aquela senhora baixinha e morena. Sua casa ficava no início da vila, e entre ela e a de Valter, havia a do seu Luís Carlos, aquele homem grande e rechonchudo, que gostava de contar piadas ás crianças da vila, fazer imitações de bichos engraçados, encher as bolas dos meninos quando estas estavam murchas, dar-lhes pacotinhos de balas. Era um sujeito de quem todos gostavam, simpático e alegre.

Um dia, ele chamou Augusto e Valter, à sua casa.

O estômago de Amarante se embrulhou.

Ele se lembrou da visita. Ele e Valter. Deus. Como aquilo ficara calado por tanto tempo?

O quarto do homem. Seu convite para entrarem. Está tudo bem, ele dizia. Somos amigos, não somos? Amigos especiais.

Amarante despencou no sofá, e deixou-se ficar ali, um grito entalado no peito ameaçando encontrar o caminho garganta a fora.

Em algum momento, ele esquecera. Bloqueara. Ou sempre soube que estava ali, descansando debaixo da superfície, entre camadas de poeira? Não importava. A lembrança que em algum ponto da vida conseguira cauterizar estava de novo viva, palpitando por trás de seus olhos.

“Amarante?” Pedro, na entrada da sala. “Que porra aconteceu com você?”

Amarante se levantou, pôs a fotografia de volta no lugar e respirou fundo.

“Nada,” disse. “Não aconteceu nada.”

* * *

“Eu estava nervoso, tremendo. Mas precisava do dinheiro. Quero que vocês entendam isso. Precisava dele pra me reerguer. Meu Deus... Eu entrei no terreno e segui até a árvore. Eu sou pequeno, foi fácil subir. A arma era fria contra a minha barriga. Eu quase desisti. Quando faltava só mais um galho para alcançar a janela, eu tive prestes a voltar. Antes tivesse feito isso. Mas eu continuei. Quando estava bem de frente pra ela, vi movimento lá dentro. Agora era tarde demais pra voltar, tarde demais pra me arrepender. Eu saquei a arma e apontei. Mandei ficar quieto. E só então vi quem estava lá dentro.”

7

Mais tarde naquele dia, o corpo foi retirado e a perícia passou um pente fino no quarto. O notebook de Valter estava sendo examinado e uma apólice de seguro cujos beneficiários eram Margarida Romão de Souza e seu filho, Vinícius. Amarante apresentou os fatos apurados ao delegado titular, pegou suas coisas e saiu da delegacia em direção ao estacionamento. Pedro o aguardava. Moravam próximos um do outro, e Amarante costumava lhe dar uma carona.

Enquanto entrava no carro e dava a partida, sentia-se em frangalhos. A madrugada o esmagara. Muito do como percebia a si mesmo havia mudado, e ele sabia que o assassinato de Valter o assombraria por muito tempo.

Mas, ainda assim, queria resolvê-lo.

“Aquele celular pro qual a vítima ligou,” disse a Pedro. “Tente de novo.”

“Você tá bem?”

Não. Ele não estava. Amarante sequestrou o celular de Pedro da mão do amigo. Procurou pelos números recém discados e encontrou o que procurava. Mandou chamar e esperou. Pedro o encarava, preocupado. “A coisa não está mais nas suas mãos, Amarante. Meu Deus, a gente só estava de plantão.”

Amarante ignorou-o. Após oito toques, alguém atendeu.

“Alô?”

“Com quem eu estou falando, por favor?”

Um breve silêncio. Então, uma voz um tanto anasalada: “É o Cido. Cidinho. Quem é?”

“Cidinho,” disse Amarante. “Cidinho, prazer. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas.”

“Quem está falando?” Amarante viu-se por um instante sem saber o que dizer. O tom de Cidinho fora desconfiado. Demorou a responder. Gaguejou.

Do outro lado da linha, desligaram.

“Filho da puta. Merda.” Tentou novamente. Chamada bloqueada. “Porra!”

Pedro estava calado. Parecia tentar puxar algo pela memória. Amarante prosseguia amaldiçoando Deus e o mundo.

“Peraí. Cidinho? Era esse o nome do cara?”

“O quê? É, sim. Foi o que ele disse.”

“Ele tinha uma voz fanha, fina?”

Amarante olhou para ele. “Como é que você sabe disso?”

“Acho que sei que Cidinho é esse. Ou pelo menos tenho uma boa ideia. Já prendi um cara com esse nome daqui do bairro por assalto faz uns anos, mas ele saiu, fanho até não poder mais. E acho que sei de um lugar onde podemos encontra-lo.”

Amarante ligou o carro. “Vá dando as instruções.”

“Amarante, a gente tava só de plantão. O assunto não é nosso.”

“Você é surdo ou o quê?!”

O bar ficava num bairro próximo, numa rua escondida entre casas velhas e ladeiras que davam acesso a morros. Pedro ia calado no banco do carona, enquanto Amarante dirigia como um louco. Pararam na calçada oposta. “Vamos.” Saíram e atravessaram. Amarante sequer olhava para os lados.

O lugar era pequeno, mesas dobráveis espalhadas sem nenhuma organização. De trás de um balcão, um homem arregalou os olhos, vendo imediatamente que eram policiais. Algumas pessoas têm essa habilidade. A maioria das mesas estava desocupada – ainda eram onze da manhã – mas um ou outro bebum profissional já estava a postos. Amarante levantou a voz: “Cidinho. Tem algum Cidinho aqui?” O homem detrás do balcão estava nervoso.

“Ele está ali,” disse a voz de Pedro, atrás dele, apontando para o homem pequeno sentado ao fundo. Amarante percebeu o pomo-de-adão do homenzinho subindo e descendo em câmera lenta. Ainda assim, ele tentou conservar um pouco da dignidade.

“Quem quer falar comigo, porra?”

Amarante reconheceu a voz de imediato. “Eu tentei pelo celular, mas você desligou. Polícia. Agora vamos conversar. Sobre Valter Romão.”

“Eu não sei de nada. Nem sei quem é esse cara aí.”

Uma hora depois, após com o nariz ensanguentado, ele começou a contar.

“Quando eu o vi lá dentro, pensei que tudo não tinha passado de uma brincadeira. Uma sacanagem com a minha cara. Ele, lá, parado, calmo, como se tudo estivesse normal. ‘Que porra é essa?!’, eu perguntei. Ele me ajudou a entrar. Eu estava furioso. Ele pediu que eu me acalmasse e seguisse com o plano. ‘Você é louco. Completamente louco,’ eu falei. Ele se justificou dizendo que se tivesse dito desde o começo que ele mesmo era o alvo, eu nunca teria aceitado. Por isso era melhor que eu pensasse que se tratava de algum inimigo dele, alguém que não fazia diferença pra mim. ‘Mas por quê?’ eu perguntei. Ele ficou em silêncio por um bom tempo.

“O quarto estava todo desarrumado. Depois ele me disse que isso fazia parte do plano: era pra fazer parecer um assalto. Com o cofre aberto e tudo mais... bom, isso foi depois. Ele estava lá calado e eu tentando me controlar para não começar a berrar com ele. Entendam, eu gostava do sujeito. Ele falava comigo como gente. Isso é mais do que eu recebo todo o dia.

‘Cido, eu tenho molestado crianças por dez anos.’ Foi o que ele falou, olhando direto nos meus olhos. A voz dele tremeu. ‘Eu não consigo parar. Por isso você precisa atirar em mim. Ali naquela sacola estão alguns livros, junto com o resto do dinheiro. Leve. Todo mundo precisa pensar que isso foi um assalto, e que eu reagi ou coisa assim, e por isso acabei morto. Minha tia e meu primo vão receber o dinheiro do seguro. Eles vão ficar bem. Tudo vai ficar melhor sem mim aqui. Eu sou um monstro e não consigo deixar de ser. Por favor, atire em mim’.

Eu nunca pensei que ia ouvir aquilo dele. Um cara que abusava de crianças! Me dava nojo só de pensar. Mas eu não conseguia. Levantei e comecei a andar pra lá e pra cá, nervoso. Ele também se levantou, ao lado da cama. ‘Está tudo acertado. Vão olhar essa bagunça e vão achar que foi um roubo. Anda, atire’. Eu disse que não. Ele ficou furioso. Parecia que ia começar a chorar. Falou alto, gritando mesmo. Que nós tínhamos um pacto e não era correto quebra-lo. Eu tremia de cima a baixo. A arma pesada na minha mão.

‘Dez anos,’ ele disse. ‘Tempo demais. Eu não quero mais isso. Eu destruí o meu primo. Eu sou igual ao monstro que me destruiu. Anda. Atira. Atira em mim AGORA!’

Meu Deus, me perdoa... me perdoa, Senhor...

Eu fechei os olhos e apertei o gatilho. A cabeça dele explodiu e o sangue voou na parede. Ele caiu morto. Meu Deus, ele caiu.

Vocês me entendem? Hã? Entendem?

Meu Deus, meu Deus, meu Deus...”

Eles deixaram Cido em sua casa. Amarante pediu desculpas pelos socos e por perder a cabeça. O homem estava abatido e somente assentiu. O coração de Pedro ainda martelava a lembrança do companheiro cego de ódio, partindo para cima do suspeito que respondia com negativas às perguntas dos dois. Fora um interrogatório criminoso, e aquilo lhe deixara um gosto amargo na boca.

“Eu sou igual ao monstro que me destruiu,” disse Amarante baixinho. Então pôs o carro para rodar. Era possível que alguém tivesse visto ou ouvido alguma coisa, mas, estando na vizinhança em que estavam, ele achava difícil que alguma denúncia fosse feita.

“O que foi aquilo lá dentro?”, perguntou.

O olhar de Amarante era um poço de vazio. Não parecia prestar atenção sequer na rua pela qual trafegava. Ele não respondeu àquela pergunta. Pedro se perguntou se saberia, um dia.

“Não vamos mesmo contar a ninguém?”

“Nós prometemos. Se contarmos, aquela família perde o seguro. É o mínimo que eles merecem depois do que ele fez com o garoto.”

“Você acredita mesmo nessa história?”

Amarante se lembrou de Vinícius naquela madrugada. Dezessete anos e ainda na oitava série. Repetências seguidas. E um homérico pouco caso com a morte do primo.

“Sim.”

“Meu Deus. Isso é loucura.”

Era. Ele pegara o celular que estava com Cido e se desfaria dele, de modo que a polícia não pudesse contatá-lo e descobrir seu papel na história. Era um aparelho conseguido de forma ilícita, de modo que seria inútil tentar chegar até o assassino de Valter através do registro do número na empresa de telefonia móvel. Ele não estava certo se aquela era a coisa certa a fazer, mas a faria mesmo assim.

Pensou na foto de Valter. Sorriso. Bola debaixo do braço. Luís Carlos. Venham aqui, venham. Não vai demorar.

Ele conseguira esquecer. Valter não. E aquilo os moldara, os tornara quem eram.

Amarante se concentrou no caminho a sua frente. Sabia agora mais sobre si do que gostaria, mas é o preço que se paga pela verdade. Era tarde demais para esquecer.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Conto: TARDE DEMAIS PARA ESQUECER - Parte 1

(Conto originalmente escrito como trabalho final da disciplina Identidades Culturais na Contemporaneidade, do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense. Erros referentes ao procedimento policial e ao trabalho de perícia são de minha total responsabilidade.)


“O que você tem que entender é que eu só aceitei fazer a coisa porque estava fodido. Completamente. Não pensei direito na hora. Estava para ser despejado de casa a qualquer minuto, mal tinha dinheiro pruma refeição, meu filho não olha na minha cara e ninguém contrata gente com passagem pela polícia. Quando ele apareceu, eu estava num bar. Tinha tomado uma pinga pra afastar o frio, e estava pensando como ia fazer pra pagar. Não sei como ele chegou em mim, mas já se aproximou sabendo quem eu era e que, na minha situação, eu tava topando qualquer coisa. Mas ele me ouviu, cara. Deixou eu falar da minha vida sem interromper, olhando no olho. Quase como um amigo de anos, sabe? Eu lembro de ter pensado: ‘Ei, taí um sujeito bacana.’ Ele respeitou, falou comigo sem me ver como inferior. Por isso eu gostei dele. Acho que foi por isso que eu aceitei fazer o que ele me pediu. Quando a gente estava pra sair, ele chegou mais perto e disse que sabia que eu tava passando um aperto. E que podia me ajudar.”

“Se você matasse alguém?”

“Se eu matasse alguém.”

* * *

1

Sangue. Sangue e miolos agarrados à parede. Como um borrão de tinta numa tela branca. Foi a primeira coisa que viu quando entrou no quarto de Valter. Demorou a assimilar a cena – o vermelho denso estampado na parede, o cheiro desagradável que imperava lá dentro, mistura cigarros e livros velhos – e ficou um bom tempo paralisado na entrada, temeroso do que encontraria quando se movesse mais para dentro e um novo ângulo revelasse o que a cama agora escondia.

Deu alguns passos, engolindo em seco. Contornou a cama. O corpo estava caído e o chão empesteado de sangue. Havia roupas por toda parte. A arma – a velha arma que Valter guardava no pequeno cofre escondido na cômoda – jazia cerca de vinte centímetros da mão de seu primo, imersa. Mais tarde ele não saberia dizer quanto tempo ficou ali, piscando e tentando acordar de um sonho que não estava acontecendo. Também não saberia precisar quando as lágrimas começaram a se precipitar de seus olhos e o peito a apertar-se, como se uma mão impiedosa comprimisse seu coração.

Vinícius estendeu a mão, emergindo do transe, e pegou o celular de Valter, caído ao pé da cama. Discou e esperou e, quando atenderam, ele estranhou a voz que lhe saiu da boca; parecia estranha e distante, fraca como a de um velho, um sussurro carregado de não-ditos. Quando terminou de falar, sentou-se na cama. Olhos fixos e boca seca. Ainda estava lá, imóvel, encolhido, quando sentiu o toque no ombro e ouviu a voz que o chamava à realidade. Foi retirado. Enquanto saía, seus olhos buscaram até o último instante a poça de sangue que se alastrara por debaixo da cama, e o aroma do quarto havia se infiltrado em suas narinas de tal modo que não foi possível esquecê-lo durante muito, muito tempo.

2

A ruela fazia esquina com a avenida principal do bairro, e a vila ficava quase no final dela, espremida entre uma padaria e uma pequena agência dos Correios. O portão enferrujado estava aberto, e um policial militar postava-se na entrada, braços cruzados contra o peito e expressão de quem gostaria de estar em outro lugar. Amarante viu que tinham isso em comum. Ninguém gosta de lidar com gente morta, mas acontece. Era raro, no entanto, já abrir o plantão com um cadáver nas mãos; raro e nem um pouco animador. A madrugada é povoada por arruaças, festas barulhentas demais, problemas com bêbados, viciados, prostitutas e outros incidentes semelhantes. De vez em quando alguém morria. De vez em quando alguém era morto. De vez em quando alguém ligava dizendo que havia um cadáver no quarto, e, meu Deus, tem sangue por toda parte. Venham, venham logo.

Era por volta de meia-noite e meia. Fazia muito frio. Ele enterrou ainda mais fundo as mãos nos bolsos.

Assim que pôs os pés na vila, Amarante percebeu que já estivera ali antes. A sensação veio-lhe forte, instantânea. Ele olhou para uma das casas, tomada pela escuridão, e viu uma criança sentada no chão, examinando com atenção algo redondo entre o indicador e o polegar; um garoto de uns sete anos, moreno, que no momento seguinte projetou a mão para frente e lançou a bolinha de gude na direção do triângulo desenhado a giz mais para o centro da vila, no interior do qual outras bolas semelhantes jaziam. A bola do menino acertou uma delas, o que lhe dava o direito a uma nova tacada seguida. Amarante o viu correr mais para perto do triângulo para o novo arremate. A lembrança o paralisou. Quem era o garoto? Quando estivera ali pela última vez?

A resposta também surgiu certeira em sua mente, uma certeza inquestionável. A lembrança do menino jogando bolas de gude ficou clara. Ele prosseguiu acertando todas as outras dentro do triângulo, para desespero dos outros meninos, que de repente se viam sem suas maiores riquezas, enquanto o outro aumentava sua coleção.

O menino era ele mesmo, Augusto Amarante, anos e anos atrás, tantos que sequer se lembrara, ao receber a notícia do corpo encontrado na Vila do Rosário, de que aquele bucólico conjunto de casas certa vez fora o lar de sua família. Agora que a coisa o atingira, um sorriso brotou de imediato em seus lábios.

“Quê foi?” Era Pedro, investigador que viera com ele. Testa franzida.

“Não, é que...” Amarante ficou calado e seu sorriso morreu à medida que sua expressão se fechava. “Qual era mesmo o nome do homem morto?”

“O garoto que ligou disse que ele se chamava Valter. Porra, Amarante, que cara é essa?”

“Nada. Nada.” Ele passou por Pedro, seguindo em frente. O apalermado companheiro o seguiu até chegarem a casa número 4.

Ele se lembrou. Surpreendeu-se com isso. Fazia muito tempo. Mas algo saltou daquele espaço desordenado de sua memória onde ficava arquivado o que já fora esquecido. Aquele quintal. Belos canteiros com plantas diversas, as folhas se estendendo rente ao muro e ultrapassando-o, como se tentassem escapar. Nos fundos havia uma escada que levava à casa ao lado, uma quitinete. Foi para lá que foi conduzido pelo PM que atendera o chamado, juntamente com o que aguardava lá fora. No caminho, ao passarem pela sala, viram um jovem encolhido sobre o sofá, pernas apertadas contra o corpo, rosto escondido contra os joelhos. Pedro ficou com ele. Amarante e o PM, Gláucio, contornaram a casa e subiram as escadas. Amarante percebeu que estava tenso, um tipo novo de tensão que se diferenciava da usual.

“A coisa tá feia,” disse Gláucio, antes de entrarem.

Feia. Descrevia a cena. Amarante já vira piores. Ainda assim, não se lembrava de um nó na garganta tão apertado.

Valter. O nome lhe despertava algo de familiar. Fazia tempo, muito tempo.

3

O investigador tinha se apresentado como Augusto. Era um homem alto, magro, de cabelo castanho brilhoso jogado para trás, cavanhaque discreto e olhos muito pretos. E estava nervoso, Vinícius percebeu. Desconfortável. Tenso.

Ele se ajeitou no acento. As lágrimas já haviam secado e ele estava mais calmo. Mau se deu conta do vento gelado que entrou abruptamente e varreu a sala. O outro policial que chegara há pouco soltou um palavrão e correu para fechar a janela, subindo em seguida o zíper da jaqueta pesada até o queixo. Augusto disse:

“Quem mais mora aqui?”

“Minha mãe. Ele está de plantão no hospital. Já liguei pro celular dela.”

“Então seu primo morava aqui com vocês.”

“Sim.” Vinícius se deu conta do verbo no pretérito. É isso que acontece quando você morre: te confinam na conjugação do era, do não é mais. E logo tudo que sobra de você é essa memória turva e imprecisa de alguém que esteve aqui, que morou na quitinete dos fundos, que em certa época ocupou aquela cadeira que agora fica vazia na hora do jantar. Ele fechou os olhos e sentiu um arrepio que não teve nada a ver com o frio. De repente sentiu-se cansado, exausto, pronto para uma longa e revigorante noite de sono.

“Conte o que aconteceu.” O investigador, olhando-o fixamente.

“Ele não desceu pra jantar. Cheguei da escola umas onze horas, e vi o prato que a minha mãe tinha preparado pra ele dentro do micro-ondas, cheio. Achei estranho, porque ele sempre janta na mesma hora. Depois que eu terminei de comer, subi pra ver se ele queria que esquentasse a comida dele. Ele estava lá, daquele jeito que vocês viram.” Vinícius inconscientemente se encolheu sobre a almofada. A imagem estava vívida feito uma brasa em seus olhos. Ele pressionou as pálpebras para que fosse embora.

“Você mexeu em alguma coisa lá em cima?”

“Não. Só no celular. Peguei o celular dele e liguei pra vocês.”

“Quando você chegou, a casa estava aberta? Alguma coisa fora do lugar, algum sinal de confusão?”

Vinícius se sentiu confuso. “O quê?”

“Você viu algo de suspeito? Ouviu alguma coisa? O tiro?”

“Não. Não vi nada. Não ouvi nada. O portão e a porta estavam trancados quando eu cheguei. Estava tudo no lugar.”

Os três policiais trocaram olhares. O investigador que dissera se chamar Pedro e que fechara a janela estava de pé a sua frente, as costas apoiadas na parede, e logo voltou a concentrar-se detidamente nele. Vinícius teve a sensação de que, se o menor dos músculos de seu rosto se mexesse, aquele cara notaria.

“Então você chegou, jantou, foi subir para falar com seu primo e o encontrou lá?”

“Assisti um pouco de televisão enquanto comia.”

“Ah. Bem, apenas ratificando: nada de anormal quando você chegou; nenhum barulho estranho ou suspeito, nada que parecesse um tiro; ninguém veio procurar Valter enquanto você comia. Certo?”

“Sim,” Vinícius disse. “Ele só estava lá. Só estava lá, caído.” Ele fixou os olhos pesados no chão.

“Onde você estuda, rapaz?”

Demorou a responder. Era uma sonolência que ele não sabia de onde saíra, e que retardava seus pensamentos. O investigador a sua frente se impacientou e estalou os dedos, como se quisesse despertá-lo.

“O quê? Desculpe.” Passou a mãos pelo rosto. “Fiquei cansado, de uma hora para outra.”

“Tudo bem. Então: onde você estuda?”

Ele deu o nome de um colégio estadual da região.

“À que horas saiu de lá?”

“Umas dez, quinze para as onze.”

Houve um breve silêncio. Vinícius se perguntou se eles checariam se aquelas informações eram verdadeiras. Ele queria que acabassem ali, que o deixassem em paz. Queria dormir e acordar e esquecer que aquilo tinha acontecido. O cheiro do quarto de Valter impregnava suas narinas e o nauseava.

“O que a sua mãe disse?”

“Que ia tentar sair mais cedo. O plantão dela só termina de manhã.”

Augusto parecia refletir para ver se não tinha se esquecido de nada. Vinícius esperou.

“Aquela arma, você já a viu antes?”

“Não.”

“Ele parecia estranho nos últimos dias? Algum comportamento fora do incomum, mais agressivo, mais calado?”

“Normal.” Um leve sacudir de ombros.

Viu que a resposta irritou Augusto; problema dele. Não ia ficar se forçando a formular respostas maiores e detalhadas só para agradar polícia.

“É só isso? Ele simplesmente estava ‘normal’?” O policial sinalizou um par de aspas no ar.

“É. Isso.”

Ele ia dizer alguma coisa, provavelmente algo rude, mas o telefone tocou no momento seguinte, interrompendo o que quer que fosse. Vinícius estendeu a mão e pegou o fone de cima da mesinha ao lado do sofá. Disse um “alô” preguiçoso. Era sua mãe. Assim que ouviu a voz dela, estendeu o aparelho na direção do investigador, dizendo quem era. Quando Augusto levou o fone ao ouvido, Vinícius se levantou, cruzou a sala, passou pela cozinha e entrou no banheiro. Encarou o próprio rosto no espelho. Havia algo de errado, ele sabia. Algo que estava faltando. E ele localizou esse algo enquanto corria os olhos pelas marcas das lágrimas que chorara mais cedo. Tinham sido poucas, e ele jamais pensaria que viria a derramar alguma numa ocasião como aquela; então por quê?

Decidiu: havia chorado porque algo dele se fora junto com Valter. Não fora por tristeza. Tristeza era justo o que estava faltando. Era tudo que ele não estava sentindo. Ele estava tranquilo, sereno, em paz. Um pequeno sorriso sinalizou em seus lábios durante um segundo, não mais que isso, e então saiu dali. Da curva da cozinha para a sala, ouviu vozes, e, quando estava novamente naquele aposento, viu que mais gente tinha chegado para fazer-lhes companhia.

* * *

“Eu não disse sim de cara. Porra, só se eu fosse um maluco. Mas ele insistiu. Acabou conseguindo me convencer. Me deu a arma. E dois mil reais. Disse que depois do serviço, eu ia ganhar mais oito. Não me olha com essa cara. Você não entende, não tem ideia do que é estar na situação que eu estava, quase tendo que mendigar! Isso não justifica, mas, porra, tira esse olhar do rosto, como se eu fosse merda. Eu sou gente. Eu sou gente, porra.”

“Sim. Um ser humano que matou outro.”

“Porque eu precisei.”

“Não quero saber. Continua.”

“Ele me deu as instruções. Eu tinha que vir pelo terreno baldio que dá na avenida e subir pela árvore que dava na janela do quarto do cara. Era assim que ele se referia à pessoa que eu tinha que matar, sempre o cara. Ele disse que a janela estaria aberta, e que a pessoa estaria lá dentro, provavelmente sentada numa escrivaninha. Perguntei como ele podia garantir essas coisas, e ele respondeu dizendo que ia me dar as respostas na hora certa. Marcou o dia e a hora. Tinha mais duas pessoas morando na casa principal, e elas não podiam estar lá quando eu chegasse. No dia combinado, ele me ligou. Eu estava nervoso. Estava quase na hora. Ele disse: ‘Nós temos um acordo. Um pacto. Você tem um trabalho a fazer. Anda, vá logo. Vai ficar tudo bem. Eu garanto. Vá fazer o que você tem que fazer.’”


Continua...


Tecnologia do Blogger.