sábado, 11 de junho de 2011

Resenha: REVOLUÇÃO DIFÍCIL - George Pelecanos

(Originalmente postada no extinto blog Gotas Humanas)

A principal problemática de ler incansavelmente um determinado estilo literário é que, depois de um tempo, você dificilmente se surpreende. Leio policial desde os doze anos, e estou com vinte, de modo que não é nem um pouco comum eu conseguir ver o final chegando a páginas e páginas de distância. Não costumo julgar um livro por esse quesito, a não ser que a trama se apóie em reviravoltas absurdamente previsíveis, e, a partir do momento em que percebi que estava ficando perigosamente bom nesse lance de antever desfechos, passei a prestar mais atenção em outros elementos, como narração e construção de personagens, o que modificou bastante minha experiência com romances policiais. Mas sempre existe aquele livro que te pega, não importa o quanto você saiba ou julgue saber sobre o gênero. "Revolução Difícil" (Companhia das Letras, 410 páginas) foi um dos que me pegou.

Porque o romance de George Pelecanos, apesar do que a sinopse na quarta capa parece apontar, não se apóia nunca na trama. De fato, não há um crime central, ao redor do qual a narrativa se organiza, não há reviravoltas nem finais surpreendentes. "Revolução Difícil" triunfa, basicamente, por causa de seus personagens.

Derek Strange tem 21 anos, é negro e pobre, vive em Washington, onde 70% da população é negra e mora em favelas e cortiços. Além de sofrer com o racismo dos colegas da Polícia, Derek também é olhado com desconfiança pela própria comunidade negra. O ano é 1968, uma revolução está para estourar a qualquer momento, e nos dias que antecedem e sucedem a morte de Martin Luther King, uma série de acontecimentos ligados ao mundo do crime interligam a vida de um pequeno emaranhado de pessoas, marcando Strange e sua família para sempre.

A preocupação de Pelecanos com seus personagens fica visível desde o início do livro. Uma primeira parte, com pouco mais de oitenta páginas, mostra os acontecimentos de um único dia da primavera de 1959, e daí para frente a história pula para 1968 e aí permanece até seu desfecho. O autor apresenta Derek e suas expectativas e erros juvenis, juntamente com diversos outros que cruzarão sua vida ao longo dos anos. Sua condição de protagonista não condena a história a permanecer presa ao seu ponto de vista: o autor o transfere para todos os personagens que julga importantes, e não são poucos, tornando-os mais tridimensionais e humanos, mesmo os que ficam pouco tempo em cena. Mesmo os vilões de "Revolução Difícil" conseguem soar críveis, apesar de não fugirem a certos clichês do gênero. Pelecanos mostra uma habilidade surpreendente de dissecar sentimentos, e nesse sentido, a trama do livro - ou as várias tramas - tornaram-se, para mim, quase periféricas. Dou muitíssimo valor a bons personagens, e nesse quesito "Revolução Difícil" é um show a parte.

A narrativa corre paralelamente a eventos reais, todos ligados aos conflitos raciais ocorridos nos Estados Unidos daqueles dias. As menções às marchas lideradas por Martin Luther King e ao então cenário político americano são constantes, de modo que tem-se a impressão de que Pelecanos conseguiu extrair de forma competente a tensão que certamente permeou aquele período da história americana. O autor também ganha pontos por não "puxar a sardinha" (na falta de uma expressão melhor) para o lado dos negros, como muitos filmes sobre esta época, por exemplo, costumam fazer, estereotipando-os como pessoas batalhadoras, sofridas, honradas e apenas isso. Sem negar a óbvia carga que o racismo colocou sobre os ombros a população negra, Pelecanos nunca os idealiza, e, de fato, não o faz com qualquer um dos seus personagens. Ninguém é exatamente bonzinho em "Revolução Difícil", ninguém é fácil de definir, seja lá qual a cor de sua pele.

Pelecanos também dá muito valor à ambientação, apostando em descrições incrivelmente detalhadas de Washington e adjacências, citando a todo momento nomes de ruas e estabelecimentos comerciais da década de 60 (no que deve ter tido um trabalho de pesquisa infernal). Nesse sentido, pode-se dizer que a cidade retratada pelo autor ganha algo mais, soando mais real. No entanto, nem sempre essa preocupação incomum com a comunidade encontra justificativa na própria história. Descrever em minúcias o trajeto que Strange faz em sua ronda, apontando cada loja de discos, bar ou mercado no caminho realmente ajuda na visualização da comunidade onde a ação se insere, mas se tal trajeto em nada influencia na mesma ação, tem-se aí um recurso utilizado sem qualquer propósito objetivo. O mesmo pode-se dizer da obsessão de Pelecanos com o blues e com carros: para que perder tanto tempo com cantores e bandas e com modelos e peças se não fazem qualquer diferença nas tramas do livro? Tudo o que se consegue é atrapalhar a fluidez da narrativa, o que é um pecado, já que "Revolução Difícil" tem nela um grande aliado.

Por sorte, o livro não é prejudicado de forma irrecuperável por esses pequenos deslizes, que quase passam batidos quando se visualiza o todo. As tramas que aproximam a vida de Strange da dos outros personagens não soam em momento nenhum forçadas, e o terceiro ato guarda sequências de ação altamente cinematográficas, carregadas de tensão, culminando num desfecho dramático que não se rende a qualquer clichê de final feliz. Afastando-se das convenções mais sabidas do romance policial (talvez fosse mais acertado olhar para o livro como drama policial), "Revolução Difícil" decididamente entra na minha lista de melhores leituras do ano, e George Pelecanos na de autores a serem lidos à exaustão.

Boas leituras.

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