segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Resenha: O ESPANTALHO - Michael Connelly

A recente vinda de Michael Connelly ao Brasil, para um dos cafés literários da Bienal do Livro, foi o fator determinante para que eu adquirisse “O Espantalho” (Suma de Letras, 378 páginas), livro que o autor norte-americano lançou em 2009 e por aqui saiu no ano passado. Já tinha lido dois outros romances de Connelly e, embora nenhum dos dois tivesse me despertado reações das mais efusivas, em minha memória eram histórias policiais sólidas e muito bem escritas, com um pé na tradição noir, sem render-se a ela de todo. Terminada a leitura de “O Espantalho”, não tenho muito o que acrescentar a essa conclusão anterior.

Protagonizado por Jack McEvoy – que não é o personagem mais conhecido e recorrente de Connelly, lugar este ocupado pelo tira Harry Bosch, protagonista da maioria de seus livros –, a história se inicia com a demissão do repórter do Los Angeles Times como parte de um programa de redução de despesas. Porém, Jack não terá de ir embora imediatamente: mais duas semanas de trabalho o aguardam, durante as quais terá de treinar Angela Cook, sua jovem e versátil substituta. Sem muitas perspectivas em relação ao trabalho – os jornais impressos estão perdendo espaço para a internet -, McEvoy decide se despedir em grande estilo, investigando a prisão de Alonzo Winslow, rapaz negro que está sob custódia pelo brutal assassinato de uma stripper. Porém, o que o jornalista sabe sobre o caso é somente a ponta do iceberg.

A história é narrada pelo próprio McEvoy em ritmo de contagem regressiva, uma vez que todo o tempo que lhe resta são duas semanas. De modo que, desde o início, um forte senso de urgência é impresso na trama, o que de imediato atrai o leitor e o prende à narrativa. Merece destaque também as boas descrições do autor – que, antes de se tornar escritor em tempo integral, trabalhou como repórter – do ambiente e da rotina do Los Angeles Times, que conferem verossimilhança e detalhismo à história. Nesse sentido, o atual contexto dos jornais impressos e as enormes mudanças ocasionadas pelas edições on-line, temas abordados por Connelly em momentos muito bem encaixados, ajudam o leitor a se situar e entender melhor a dinâmica entre os personagens que cruzam as páginas de “O Espantalho”.

Em grande medida, McEvoy – que protagonizou outro sucesso de Connelly, “O Poeta” – é um personagem bastante clichê, o tipão repórter ambicioso sempre em busca de uma exclusiva, o cara que conhece os meandros do sistema e sabe a que saídas recorrer. Ao mesmo tempo, há nele muito do herói durão que não gosta de esperar acontecer e resolve a parada sozinho quando tem que fazê-lo, e de quebra salva a donzela em perigo. É mérito de Connelly, portanto, conseguir transforma-lo numa figura crível e humana. Por outro lado, a agente do FBI Rachel Walling, antiga paixão de McEvoy que retorna para ajuda-lo na investigação, é uma das figuras mais bacanas do livro – também figurando em outros dos romances de Connelly –, soando competente e verdadeira quanto aos sentimentos, nunca se tornando uma figura fragilizada, mesmo que momentaneamente frágil.

Em relação à trama, não há grandes surpresas ou reviravoltas ao longo do romance. Isso se deve à escolha do autor de apresentar duas linhas narrativas, uma acompanhando McEvoy em sua investigação e outra seguindo o misterioso Carver, que o tempo todo sabemos ser o assassino por trás de tudo. Trata-se de uma opção sem muita razão de ser, em minha opinião, pois a ausência de surpresas é sempre frustrante em se tratando de um romance policial. O que conta em “O Espantalho” acaba mesmo sendo o jogo de gato e rato entre McEvoy/Walling e Carver. Connelly consegue imprimir suspense na história, que nunca se torna enfadonha ou desinteressante, pondo em conflito sua dupla de investigadores contra um psicopata que parece estar sempre um passo a frente de todos, criando uma dinâmica bacana que faz o leitor se perguntar o que acontecerá quando o momento do conflito chegar. Mas desconfio de que, se tivesse apostado numa trama mais “tradicional” – em que o mistério só é desvendado no final – o saldo final teria sido muito mais interessante.

Bem, é como minha memória anunciou no momento em que eu comprava este “O Espantalho”. Depois de tanto tempo nas listas de mais vendidos, o experiente Connelly dificilmente apareceria com algo que não pudesse ser considerado bom. É o caso aqui. Apesar de uma escolha narrativa um tanto incomum e muito pouco grata, o autor consegue se sair bem e apresentar um romance sólido e bem construído, mesmo que não espetacular. Já vale a pena.

Boas leituras.

domingo, 25 de setembro de 2011

Resenha: AS CIDADES INDIZÍVEIS


Foi no Fantasticon, Simpósio de Literatura Fantástica ocorrido em meados de agosto, que “As Cidades Indizíveis” (Llyr Editorial, 180 páginas) chegou pela primeira vez as mãos do público, numa das estreias da Llyr, selo dedicado à literatura fantástica que opera como parte da editora Vermelho Marinho, aqui do Rio. O projeto da coletânea, que conta com a participação de alguns pesos pesados da ficção científica/fantasia brasileira, já rodava pelos bastidores há dois anos, até encontrar uma casa na recém-nascida editora, comandada pela carioca Ana Cristina Rodrigues. A organização dos contos ficou nas mãos de Fábio Fernandes e Nelson de Oliveira.

São oito contos e uma noveleta que procuram trazer o fantástico, em maio ou menor grau, para dentro do ambiente urbano. As abordagens são muito particulares e o resultado final, bastante diversificado, flertando ora com a fantasia urbana, ora com a ficção científica cyberpunk, ora sabe-se lá o quê. Considerando como um todo, o livro me agradou, embora alguns dos contos tenham saído prejudicados pelo excesso de atenção dedicada à forma, com a história e personagens ficando em segundo plano.

Um a um:


Galimatar – Fábio Fernandes

O autor de “Os Dias da Peste” abre os trabalhos com um texto muito interessante, ambientado num futuro em que uma África utópica se ergue das ruínas de guerras e fatais erros da ciência. Em seu seio, uma nova Etiópia se estabelece como centro do mundo – uma “Etiópia Pop”, ou EtiPópia. O dinheiro foi substituído por um sistema de trocas conhecido como potlach, e nesse novo mundo é lá que as coisas acontecem.

Nesse cenário, conhecemos a Xamanesa e o Homem Azul, duas figuras enigmáticas que se encontram em meio à agitação da EtiPópia. Ninguém sabe quem é a mulher, de onde ela veio, qual é sua história; o homem está de partida para o espaço, juntar-se à procura de vida fora da Terra. A ação do conto consiste basicamente do contato entre ambos, cujo combustível é uma irresistível curiosidade mútua.

Cenário e personagens são apresentados de maneira fluida e bem construída. A narrativa se mantém interessante por toda a aura de estranheza que envolve a Xamaneza e o Homem Azul. A linguagem do autor é simples e de muito bom gosto. O conto se sairia um pouco melhor com um final menos corrido, mas não chega a comprometer. Uma boa abertura.


Céu do Nunca – Guilherme Kujawski

Um escritor solitário (de literatura fantástica, não por acaso) vai se tornando cada vez mais obcecado por uma cidade que só existe em sua mente.

E é basicamente isso.

O texto tem claras qualidades. Linguagem rica, um protagonista bem desenvolvido, reflexões interessantes acerca da criação literária. Mas a falta de conflitos deixa a coisa arrastada demais, e o desfecho para o qual a narrativa se encaminha me pareceu um tanto insatisfatório. A piração do cara em torno da cidade que vai surgindo em sua mente aos poucos é muito bem descrita, mas isso é praticamente tudo que o autor nos apresenta. Não é um texto que fique na memória.


O longo caminho de volta – Ana Cristina Rodrigues

Na trama, a exilada Clio volta para sua cidade natal, Biblos, a cidade-biblioteca. Protegida por uma magia que impede a entrada de forasteiros e preserva os livros das mudanças climáticas, a cidade vive de vender seu conhecimento para outros povos. Dez anos atrás, Clio fora banida como pena por suas intenções perigosas: libertar o conhecimento dos limites da cidade, desafiando, assim, o Conselho de Biblos e seu desejo pelo status quo. Pela Lei, a mulher tem direito a uma revisão em sua pena – mas os planos de Clio não envolvem esperar sentada por justiça.

O conto agrada pela atenção dedicada a trama e aos personagens, e a própria Biblos, essencial para que o leitor acredite no que está lendo. Os “bairros” se dividem de acordo com seções (Medicina, Feitiçaria, Astronomia), tal e qual uma verdadeira biblioteca. Outra boa sacada é o desprezo do Conselho pelo setor de Ficção, cujos moradores exercem funções menores na cidade, numa ironia interessante que demonstra bem como as coisas funcionam lá dentro.

Com bons personagens e uma boa história, a leitura flui com naturalidade, o leitor preso às páginas. O desfecho é particularmente bem pensado. Sem dúvida um dos melhores da antologia.


O dia em que Vesúvia descobriu o amor – Octávio Aragão

O menor conto do livro é também um dos mais interessantes, partindo de um plot que por si só merece atenção: uma cidade que um belo dia ganha vida, e mais, se apaixona por outra, pondo-se a se mover em sua direção, carregando tudo e todos que a compõem.

As descrições de Aragão criam um forte sense of wonder que faz com que o conto fique na cabeça ao término da leitura. Uma vez desperta, toda sorte de pensamentos passa a se desenrolar na mente de Vesúvia, e o autor traduz suas sensações de tal modo que a consagra uma das personagens mais marcantes da antologia.


Harmonia – Roberto de Souza Causo

Ao menor, segue-se o maior. A noveleta de Causo segue os passos de Sandra Matsugane, uma animadora de festas que tem a vida virada de ponta cabeça quando Mônica, amiga com quem dividia casa, é encontrada morta. A polícia rapidamente a associa com atividades de prostituição com as quais Sandra jamais sonharia que a amiga estivesse envolvida. A moça passa a investigar o caso por conta própria.

A noveleta corre completamente realista por um bom tempo, inserindo-se abertamente dentro do gênero policial, para ir aos poucos caminhado para dentro do fantástico e abraça-lo inteiramente do meio em diante. Todo o clima criado pelo autor no momento em que o real começa a ser tocado pelo maravilhoso é um dos pontos altos do texto. A parte policial poderia ter sido melhor trabalhada – a trama parece um tanto imprecisa em certos momentos, e o final corrida prejudica o todo –, mas quanto à fantasia presente na história, não há do que reclamar. O autor consegue como poucos na coletânea inserir o fantástico dentro do urbano. Juntamente com o da Ana Cristina Rodrigues, meu favorito.


Primeiro de Abril: Corpus Christi – Luiz Bras

(Quem já leu minha resenha da coletânea “Imaginários vol. 4” talvez estranhe, uma vez que há um conto com o mesmo título e do mesmo autor no livro da Draco. Sim, trata-se do mesmo texto – de certa forma. Aqui, o temos completo; lá, um trecho que faz sentido isoladamente, tendo por isso sido publicado no quarto volume da série.)

Quando a cidade de Primeiro de Abril ganha consciência e passa a agir independente da vontade dos humanos, um grupo de ciborgues precisa enfrentar a situação e tentar reestabelecer o controle. Se o fragmento publicado pela Draco já era bastante louco, aqui temos a visão completa da doideira.

Bras – pseudônimo de Nelson de Oliveira, organizador – imprime um ritmo bem peculiar à narrativa, conduzindo-a com linguagem cuidadosa, apostando na forma para seduzir o leitor. Consegue. Mas não fica só nisso, cria personagens divertidos e os coloca no meio de uma situação que gera interesse. O resultado final é satisfatório. Frustra um pouco o silêncio derradeiro do autor em relação a certos elementos da trama que vão sendo levantados só para não receberem uma explicação para sua relevância (como a questão do narrador, sua irmã e um certo roubo praticado por ela). Toda a piração habilmente narrada que vimos anteriormente compensa, mas só em parte.


O Coletivo – Luiz Henrique Pellanda

Dois narradores em paralelo, um homem e uma mulher, contam os lados de uma história que envolve cegueira, duas irmãs, um romance proibido e uma cidade que sobrevive do que morre no nosso mundo. Um conto arrastado, com personagens pouco calorosos e uma trama que parece se mover para lugar nenhum. Muitíssimo bem escrito, deve-se dizer, mas fora isso não apresenta nenhum grande atrativo ou elemento que gere interesse. Acabou não me chamando a atenção.


Mnemomáquina – Ronaldo Bressane

Um conto confuso, que acompanha alguns personagens numa São Paulo quase que inteiramente tomada pela água. Só é possível trafegar usando hovercrafts e veículos similares. Só conhecemos o narrador pouco antes da metade da história, e o pouco que sabemos sobre ele reflete o pouco que ele mesmo sabe sobre si. O tom irônico, coloquial, e a ambientação (que me pareceu flertar com o cyberpunk) decadente são as melhores coisas do texto. Fora isso, o que se tem são personagens que são inicialmente desenvolvidos para no fim das contas sumirem, sem que se esclareça sua relevância para a trama, e um desfecho artificialmente enigmático, apoiado na recusa do autor em oferecer respostas para as perguntas que desperta sabe-se lá por que razão. Frustrante.


Cidade Vampira (Entidade Urbana) – Fausto Fawcett

O conto que fecha a antologia é o que leva às últimas consequências a ideia de cidade. No universo criado por Fawcett, todo o planeta se converteu num enorme amontado urbano: a Tera Cidade Terra. Nesse contexto, uma seita de gnósticos espalha cadáveres por todos os cantos. Em sua crença, certos tipos de rituais conseguirão atrasar o juízo final, a descida do deus alucinado que criou a raça humana e nela incutiu o desejo pela urbanidade. Presos nas cidades, os homens não conseguem alcançar o conhecimento que os libertaria. Um antigo policial, El Diablo, que antes caçava gnósticos, enlouqueceu e passou para o lado deles. O tenente Amarildo e a psicóloga forense Rebeca o perseguem.

Trata-se de um texto difícil. Fawcett não tem freios: escreve numa espécie de semi-fluxo de consciência que faz surgir parágrafos que ocupam páginas inteiras. Sua linguagem é carregada de sarcasmo, e o texto é irreverente como um todo. Mas um pouco de comedimento não faria mal: a quantidade de vezes em que o autor repete a mesma informação (por vezes aquela que dera algumas poucas linhas antes, já perfeitamente entendida pelo leitor) chega a irritar, assim como sua inclinação a repetir palavras (pensei em contar quantas vezes Fawcett usa alucinado, mas desisti). O conto acaba ficando muito preso numa coisa só, e há pouca ação. Ainda assim, trata-se de um texto interessante, principalmente o final.

É isso.

Boas leituras.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Resenha: EU SEI O QUE VOCÊ ESTÁ PENSANDO - John Verdon

Ao encerrar a leitura de “Eu sei o que você está pensando” (Arqueiro, 352 páginas), romance de estreia do norte-americano John Verdon, e me pôr a pensar no que escreveria numa futura resenha do livro, três certezas imediatamente me vieram à mente: 1) eu tinha acabado de ler um thriller policial de muita qualidade; 2) Verdon dá uma verdadeira aula de como sugar o leitor para dentro da narrativa; 3) o mesmo Verdon dá outra verdadeira aula de como NÃO se deve entregar o clímax de um romance como esse. Bem resumidamente, é isso que tenho a dizer sobre o debute do autor - que chegou a despertar certas comparações com as histórias protagonizadas por Sherlock Holmes -, lançado há poucos meses no Brasil.

O mistério se inicia quando o detetive aposentado David Gurney recebe a visita de um antigo colega de universidade, o ex-alcóolatra e agora escritor de autoajuda Mark Mellery. Consumido pelo medo, Mellery conta a Gurney sobre os poemas ameaçadores que vem recebendo, todos fazendo referências a seu passado sombrio e condenável. E há ainda o mais inconcebível: o remetente, de alguma maneira, parece conhecer seus segredos a tal ponto de conseguir prever, com acerto, que número entre 1 e 1000 viria à mente de Mellery quando lhe fosse pedido para escolher um, aleatoriamente. Atormentado por seus próprios fantasmas do passado – um filho com quem não tem contato, uma esposa de quem se afasta cada vez mais –, Gurney mergulha no drama do colega, só para ter de lidar com seu brutal assassinato. Agora, o detetive precisa esquecer a aposentadoria e se lançar à caça de um assassino insano e brilhante.

Nota-se da parte de Verdon uma enorme ousadia neste seu primeiro romance. Sem medo de mirar alto demais, o autor despeja uma série de mistérios na primeira centena de páginas, capturando de imediato o interesse do leitor, que não tem como não se perguntar como o autor fará para prover respostas satisfatórias a eles. A própria ideia de um psicopata que consegue adivinhar em que número sua vítima pensará funciona muito bem dentro da narrativa criada: estabelece imediatamente a inteligência e sagacidade do vilão – cuja identidade só descobriremos no final, naturalmente –, bem como o envolve num aura de ameaça, essencial para que o temamos e acreditemos em sua atuação, sempre um passo a frente do que a polícia consegue calcular. E à medida que a trama engrena e mais gente começa a aparecer morta, vamos penetrando lentamente na mente do assassino, e, de quebra, na do protagonista David Gurney, que representa um pouco forte a parte em “Eu sei o que você está pensando.”

O ex-tira com um trauma no passado é um clichê recorrente em histórias policiais. Ainda mais se o mesmo ex-tira tem problemas em seu relacionamento por não conseguir abandonar suas inclinações investigativas. Nesse sentido, David Gurney segue a cartilha a risca: a morte do filho mais de uma década atrás, combinada ao casamento cada vez mais problemático com Madeleine – e, de quebra, o pouco contato com o filho Kyle, fruto de um casamento anterior – fazem dele uma figura ressequida em termos de relações humanas, o que torna ainda mais indispensável para o personagem o refúgio no mundo dos crimes, onde seu raciocínio rápido e linear lhe garante alguma segurança. Toda a composição de Gurney funciona muito bem não só no sentido de prover um bom adversário ao assassino que logo de cara sabemos ser brilhante e imprevisível, mas também um protagonista cujos dramas realmente soam convincentes e profundos para o leitor.

Gurney é essencialmente cerebral, lógico-dedutivo, na tradição de um Hercule Poirot ou um Sherlock Holmes, detetives clássicos da literatura policial, que conseguiam concentrar suas atenções em detalhes facilmente ignoráveis que, no entanto, guardavam a chave para a solução dos mistérios em que se envolviam. A diferença é que aqui o autor precisa a todo custo dar um tom de verossimilhança à narrativa – nem sempre presente nas histórias de Agatha Christie e Conan Doyle, que escreviam para outra audiência em outra época –, o que implica em não exagerar demais nas capacidades detetivescas de Gurney. Trata-se de um equilíbrio frágil entre estabelecer e demonstrar a inteligência do protagonista e não abusar a ponto do leitor considera-lo brilhante demais. E Verdon consegue esse equilíbrio na maior parte da história, embora tropece aqui e ali, e Gurney apareça com algumas deduções um tanto inacreditáveis.

Os outros personagens que cruzam as páginas de “Eu sei o que você está pensando” têm seus altos e baixos. O autor carrega particularmente a mão na composição de Rod Rodrigues, capitão da polícia cujo único papel parece ser demonstrar incompetência. Jack Hardwick, policial parceiro de Gurney durante a investigação, convence pelas boas tiradas cômicas e desbocadas. O promotor Sheridan Kline funciona na maior parte do tempo, mas não teria sido má ideia humaniza-lo minimamente (Verdon reforça a cada nova aparição do sujeito seu anseio por impressionar a imprensa). Mas, de todos os coadjuvantes, não há quem funcione melhor que Madeleine, esposa de Gurney, habilmente construída para ir tornando-se, ao longo da narrativa, um poderoso elemento não só de conflito, mas de redenção para o protagonista.

O desenvolvimento na trama é evolvente. As etapas da investigação, a especulação acerca dos métodos do assassino, suas misteriosas mensagens, sua patologia psicopata, tudo isso arrasta o leitor para dentro da narrativa – e aumenta a expectativa para o desfecho. E é quando esse momento chega que Verdon paga o preço por ter ousado demais. O clímax, que deveria ser um momento de fôlego, de virar as páginas apressadamente, arrasta-se por mais tempo do que o necessário, prejudicado pela necessidade do autor de providenciar respostas para todas as perguntas suscitadas anteriormente. O resultado não chega a ser frustrante – embora a identidade do assassino também não seja a maior das reviravoltas –, mas fica a impressão de que Verdon tentou encaixar coisas demais num espaço muito pequeno, sabotando aquele que deveria ser o ápice da história. A bonita cena final deixa o cenário arranjado para uma continuação, já lançada lá fora, mantendo, talvez apropriadamente, algumas interrogações sobre Gurney e todos os seus dramas.

Resta esperar para ver se Verdon repete os problemas deste “Eu sei o que você está pensando”, ou se consegue contorna-los, criando uma história mais redonda.

Boas leituras.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Resenha: IMAGINÁRIOS VOLUME 4


Este quarto volume da série “Imaginários”, da editora Draco, foi um dos muitos lançamentos que chegaram ao público durante a quinta edição do Fantasticon, Simpósio de Literatura Fantástica ocorrido entre os dias 12 e 14 de agosto em São Paulo. Novamente no papel de organizador esteve Erick Santos, editor da Draco, repetindo o duplo papel exercito no terceiro volume da série, já resenhado aqui (triplo, uma vez que também há um conto seu no livro). Reunindo autores em sua maioria conhecidos dentro do fandom do gênero fantástico brasileiro, a coletânea repete a qualidade do volume anterior, elencando textos que passeiam entre as muitas temáticas possíveis do terror, fantasia e ficção científica.

Vamos a um breve comentário sobre os contos da “Imaginários Volume 4”.

O cão – Leonel Caldela (@leonelcaldela)

O conto de abertura nos apresenta um cenário de fantasia onde humanos convivem em constante tensão com fadas – ou seres feéricos, como também são chamados. O filho de um duque humano narra suas aventuras ao lado do melhor amigo, um cachorro, da infância à maioridade, numa vida pontuada por encontros com os misteriosos lordes feéricos. Texto muitíssimo bem escrito, rico em descrições e ótimo no que diz respeito ao desenvolvimento do protagonista-narrador. O autor opta por não fornecer explicações para certos dados e acontecimentos – nunca fica claro o porquê de as fadas não serem capazes de criar, por exemplo, o que as prende num ciclo de cópia do que é humano –, o que apenas salienta o caráter fantástico e misterioso da trama. O desfecho honra todo o bom desenvolvimento – a cena final é particularmente impactante –, embora certa decisão tomada pelo protagonista aconteça de maneira um tanto gratuita, sem que seja possível entender sua motivação. Uma falha pequena num conto de grande qualidade.

Ela – Fábio M. Barreto

Um misterioso ser – a Ela do título – chega a um planeta inabitado com a missão de analisa-lo e povoa-lo de acordo com as condições apresentadas por seu ambiente. Longe dali, os últimos sobreviventes de um planeta em ruínas tentam desesperadamente escapar de seus perseguidores, uma raça alienígena impiedosa que não descansará enquanto não exterminá-los por completo. As duas narrativas correm em paralelo, com maior ênfase na primeira, que impressiona pela atenção dispensada pelo autor à complexidade do planeta. Também é importante para a trama a descoberta, por parte d’Ela, de sentimentos que até então só conhecia como conceitos, à medida que faz previsões sobre possíveis futuros naquele ambiente onde florescerá vida. Trata-se de um texto relativamente curto, embora a prosa encorpada do autor chame a uma leitura mais lenta e atenciosa, sem transformar o conto numa experiência arrastada ou enfadonha.

O Anel e a Pérola Solitária – Georgette Silen (@georgettesilen)

Moira, desde sua infância, se vê cercada por estranhas vozes que só ela consegue ouvir. Com quinze anos recém completos e uma estranha vontade de liberdade e contato com a natureza, a adolescente presencia um estranho fenômeno quando é atacada pelo valentão do colégio, e a partir daí começa uma teia inimaginável de descobertas. O conto tem um tom claramente infanto-juvenil, apresentando alguns dos principais elementos que comumente são associados à histórias direcionadas a essa faixa etária: a descoberta da identidade, a sensação de não pertencimento, repressão e bullyng sofridos sem motivo. A autora é bem sucedida ao retratar as mudanças – obviamente mágicas – sofridas por Moira ao longo do conto, descrevendo-as numa prosa ágil e elegante; peca um pouco, a meu ver, no uso excessivo dos pontos de exclamação, que parecem a todo momento querer reforçar um clima fantástico que já está lá. Não compromete o conto como um todo, no entanto.

Primeiro de Abril: Corpus Christi – Luiz Bras

De longe o conto mais doido da antologia, e digo isso no bom sentido. A trama – o que mais se pareceria com uma – segue um grupo de ciborgues em meio ao colapso de uma cidade que se tornou consciente e agora age por conta própria. O grande barato do texto é marcadamente a prosa, elemento que o destaca em relação aos outros textos da coletânea. É bastante difícil entender o que realmente está acontecendo nas páginas, de modo que, em certo momento, o leitor tende a abstrair esse detalhe e embarcar na experimentação do autor. Como ponto fraco, eu apontaria uma certa incompletude do texto, que desperta mais perguntas que respostas ao final da leitura.

Névoa e Sangue – Nazarethe Fonseca (@NazarethFonseca)

Os vampiros não podiam deixar de dar as caras. Na história ambientada na era vitoriana, um rico chupador de sangue desenvolve uma extrema obsessão por uma criada, Mary, que obviamente desconhece as necessidades sanguinolentas de seu patrão. O conto apresenta vampiros à moda antiga, do tipo que não tem escrúpulos quanto a matar para se alimentarem – nesse sentido, é uma sacada bastante irônica da autora batizar o vampirão protagonista de Edward. A obsessão, veículo condutor da narrativa, não me pareceu bem construída; nunca conseguimos entender realmente o que Mary tem que excita tanto seu empregador-vampiro. O texto não tem grandes atrativos, mas também não apresenta falhas monumentais. Divertido, pouco mais que isso.

O Incrível Congresso de Astrobiologia – Cris Lasaitis (@crislasaitis)

Nesse breve conto – o menor da coletânea –, a autora do bacaníssimo “Fábulas do Tempo e da Eternidade” (já leu minha resenha?) apresenta a bióloga Lima C., convidada para o MCXI congresso de Astrobiologia por seres que nunca sabemos realmente quem são. Trata-se de um texto simpático e imaginativo, quase todo conduzido (e bem conduzido) em segunda pessoa, que versa sobre a pequenez humana em relação ao universo. Para ser lido de uma vez só.

Brazil Reloaded – Antonio M. C. Costa (@ALuizCosta)

Ambientado nos Estados Unidos décadas no futuro, o conto segue o ex-presidiário Jamal, que se envolve numa situação fora de controle após aceitar fazer um arriscado serviço para uma célula política radical. O texto de ritmo ágil é o mais recheado de ação entre todos os da coletânea, embora esta nem sempre soe convincente. Por outro lado, o cenário criado pelo autor é curiosíssimo: nele, os EUA são tudo menos a potência de hoje, e países como Brasil e China ocupam o lugar antes pertencente aos yankees. Há momentos divertidos, sobretudo quando entra em cena o capitão Nascimento – qual semelhança com aquele capitão Nascimento é mera coincidência, ou não –, que trás boas doses de brasilidade à narrativa.

Bons Inimigos – Claudio Brites (@claudiobrites)

Um dos textos mais complexos do livro. A narrativa não linear se concentra em três desconhecidos que um dia acordam num ambiente fechado, juntamente com um cadáver que inicialmente não se sabe quem é. Através de flashbacks vamos entendo, bem lentamente, o que os levou àquela situação. Texto muitíssimo bem conduzido, prosa sólida e estilosa, trama sombria e carregada de suspense. O único problema, a meu ver, é a narrativa paralela, que acompanha uma tribo de índios durante a complexa preparação para um ritual de execução. O final causa dúvida e estranheza, pois não se enxerga ligação direta entre as duas, além de certa semelhança temática, o que pode tornar a experiência um pouco decepcionante para alguns. Abro o parêntese, no entanto, para um possível não entendimento da minha parte.

A Chave – Renato A. Azevedo

Uma ciber-mercenária em missão a mando de um ciber-mafioso se lança contra diversos ciber-inimigos numa ambiente virtual que pode ser fatal. Conto de pegada ágil e bastante divertido. A trama vai ganhando novos contornos e proporções, e o que se pensava simples vai se mostrando mais e mais complexo. O autor peca, no entanto, na condução dos diálogos, excessivamente expositivos em sua maioria, e também em certa cena de ação que envolve uma corrida de motos, que, apesar de muito bem escrita (sugando elementos dos videogames), não acrescenta muito à trama. Os personagens são estereotipados e os caras maus são maus e pronto. O texto fica melhor do meio para frente, quando as primeiras reviravoltas surgem. A reviravolta final, no entanto, me pareceu um tanto forçada.

O Turista – Erick Santos (@ericksama)

O editor da Draco faz sua estreia como autor num conto que, junto com o de Brites, forma uma dupla e tanto. A narrativa em forma de quebra-cabeças acompanha um homem em suas andanças na Europa, enquanto lida com algumas mulheres e as próprias lembranças. É o tipo de texto que convida, ou melhor, clama por uma segunda leitura para que se consiga encaixar as peças em seus devidos lugares, destacando-se também pela escrita seca e carregada de melancolia. O autor realmente consegue delinear o isolamento do personagem e mergulha o leitor na neura de descobrir, afinal de contas, o que está acontecendo com ele. O que não é tarefa simples, dada a não linearidade e a fragmentação do texto. Esperemos que o editor se aventure mais vezes como autor.


É isso.

Boas leituras.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Conto: TARDE DEMAIS PARA ESQUECER - Final

4

A quitinete estava em total desordem. O quarto era grande o bastante para conter a cama de solteiro, uma escrivaninha sobre a qual repousava um notebook, alguns livros e um cinzeiro lotado; uma cômoda de madeira que já conhecera dias melhores, uma televisão de 14 polegadas no canto e uma estante baixa, cujas prateleiras abarrotadas atraíram a atenção de Amarante. Era uma baderna: as gavetas estavam abertas, camisas, calças, cuecas espalhadas pelo chão.

O fotografo explorava novos ângulos, e a câmera pipocava em flashes de tempos em tempos. Foram batidas fotos do ferimento à bala, da arma abandonada em meio ao sangue, das manchas vermelhas que jorraram na parede. Amarante e Pedro observavam do limitar da porta, aguardando o momento em que poderiam abrir gavetas, remexer roupas, procurar por pistas sem contaminar a cena do crime.

Amarante conversara longamente com a mãe de Vinícius, Margarida. A voz dela fazia ecoar alguma lembrança distante que ele não procurou avivar. Foi objetivo. A mulher estava atônita, falando rápido demais, temendo que estivessem de alguma forma constrangendo seu filho; ele a tranquilizou. Em seguida, recolheu o máximo de informações que pôde.

Valter era sobrinho da mulher, filho de uma irmã mais velha que morrera de câncer e um pai que ninguém jamais soube quem era. Ela o criara desde seu quarto ano de vida, e Valter tinha seus dezoito quando o falecido marido de Margarida lhe deu seu primeiro e único filho legítimo, Vinícius.

Valter tivera uma infância e uma adolescência problemática. Saíra de casa para morar sozinho aos 20, mas voltaria seis anos depois. No meio tempo em que estivera fora, a quitinete nos fundos fora construída, e ele passou a morar ali, mediante aluguel. Passara um tempo entrando e saindo de vários empregos, mas há alguns anos se estabelecera naquela coisa de negociar livros velhos; saía pelos sebos da cidade à caça de alguma edição rara que se passasse por velharia, adquiria-a e então a repassava para colecionadores ou mesmo outros vendedores por uma quantia superior àquela que pagara inicialmente. Vinha conseguindo se manter, ao menos.

A mulher não vira muito o sobrinho nos últimos dias. Segunda ela, mantivera-se no quarto na maior parte do tempo, ou então estava fora. Esclareceram também que Margarida saíra de casa por volta das seis, deixando a janta pronta; Valter estava vivo nesse horário, pois despedira-se dela. Não notara nada de estranho ou anormal no comportamento do sobrinho. Em dado momento da conversa, ela começou a soluçar de choro.

Combinaram que Margarida falaria com o delegado pela manhã. Amarante não estaria à frente do caso, uma vez que era apenas o investigador de plantão. Quando se despediram, o pranto da mulher prosseguia.

César, da balística, franziu o cenho enquanto olhava para dentro da primeira gaveta da cômoda. Então chamou o outro e pediu aquilo fosse fotografado. Amarante e Pedro se aproximaram.

Bem no canto, ao lado de um pequeno amontoado de camisas bagunçadas, havia um cofre de ferro cinza, sua tampa aberta escancarando o interior vazio. Os quatro homens se entreolharam.

“Hum,” fez Pedro. “O cara entra, ameaça o tal Valter com a arma, pega o que está aqui dentro, dá o trabalho por encerrado e, antes de sair, bum, atira no cara. Isso, ou o assassino sabia a combinação.”

César apontou para a parada oposta.“Ele pode muito bem ter entrado por aquela janela ali.”

“Pode. Dá num terreno baldio. O cara só teria que ser bem ágil,” disse Amarante.

“E não muito grande. Bom, mas isso não é comigo. O que eu posso dizer é que não achei capsula nenhuma, o que só confirma o óbvio. O assassino usou aquela mesma trinta-e-oito semiautomática bem ali. O ferimento é compatível com o estrago que esse tipo de arma faz. Só falta saber por que deixou a arma aqui.”

O fotografo terminara e ofereceu um par de luvas para cada um dos policiais, que cingiram as mãos de borracha branca. A primeira coisa que Amarante fez foi pegar o celular de Valter e checar as últimas ligações. Segundo constava, a última ligação executada pelo morto ocorrera às 21:12 da noite passada. Pedro sacou o próprio celular do bolso e copiou o número exibido na tela do aparelho de Valter.

“Vamos ver se damos sorte.” Esperou com o telefone colado ao ouvido, mas ao cabo de um minuto, desistiu, dando de ombros. “Tentamos de novo mais cedo.”

Todas as gavetas haviam sido reviradas. Amarante não encontrou nada mais que chamasse sua atenção na cômoda e passou os olhos pelo restante do quarto. Nas gavetas da escrivaninha, mais livros velhos, um ou outro DVD pornô, moedas.

Amarante parou ao pé da cama e olhou novamente para o corpo. A época, calculou, era a mesma. Talvez um dia eles tivessem estado juntos naquela vila, quem sabe disputando quem tinha a maior coleção de bolinhas de gude, ou jogando bola, sendo crianças. O tempo passa e faz esquecer. Olhou para a janela. Sim, era perfeitamente possível entrar por ali. Pela desarrumação no quarto, alguém estivera procurando por algo, o que indicava uma possível motivação para o crime; o cofre vazio a fortalecia. Latrocínio? Era o que parecia, mas ele não estava convencido.

“Se ele tinha a arma e o dono do quarto juntos, por que a bagunça?” Pedro olhou para ele. “Ele ameaçou o cara para que abrisse o cofre; tudo bem, isso parece lógico. Mas por que as roupas estão remexidas dessa forma?”

“Como assim?”

“Ele tinha o cara nas mãos. Era só manda-lo entregar o que tinha de valor, e pronto. Quer dizer, a vítima devia saber onde estavam as coisas no próprio quarto. Iria diretamente a elas. Não precisaria procurar, certo?”

Pedro refletiu sobre aquilo.

“Bem, teoricamente não. Mas o cara pode ter ficado nervoso. Acontece quando tem uma arma apontada pra sua cara.”

Amarante coçou a cabeça. “Pode até ser. Mas... não sei. Será que o garoto sabe o que tinha dentro desse cofre?”

5

Pancadas na porta. Vinícius se assustou. Abriu os olhos debaixo da coberta com a firme sensação de que era ele. Que ele tinha voltado para cobrar-lhe algumas explicações. Por que você não está triste por mim, Vinícius? Pensei que fôssemos melhores que isso. Pensei que fôssemos amigos especiais.

Amigos especiais. Ele não o ouvia dizer aquilo há anos, mas as palavras soaram nítidas e próximas em sua memória. Novas batidas. O momento de temor passou. Ele cambaleou da cama e abriu a porta.

“Você me acordou.”

Era o tal Augusto. Ele o mediu de cima a baixo, a cara fechada. “Seu primo tinha um cofre. Ele está aberto e vazio dentro de uma das gavetas da cômoda. Sabe o que tinha dentro?”

“Hum,” fez Vinícius, soltando um bocejo. “Cofre?”

“Um cofre cinza, leve, pequeno. Você nunca o viu?”

“Não. Nunca vi.”

O investigador tencionou os lábios, com um pouco de irritação.

“Sabe se ele guardava dinheiro ou alguma outra coisa de valor no quarto? Ele tinha carteira, cartões de crédito, talões de cheque?”

“Devia ter, eu não sei, ele não ficava me mostrando. Olha, a única coisa valiosa lá em cima são aqueles livros velhos que ele vendia, pelo que eu sei. E ainda assim nem todos. Era disso que ele vivia. Escuta, posso dormir em paz agora?”

Os olhos de Augusto se estreitaram por baixo das sobrancelhas espessas e seu semblante grave pareceu se adensar. Ele fez um gesto de cabeça, deu as costas e se foi, calado e sombrio. Vinícius fechou a porta e voltou a se jogar na cama.

Amigos especiais, dissera Valter. Fazia muito tempo. Vinícius se encolheu sob a coberta e cerrou os olhos. Mentira acerca da arma porque não queria se envolver. Valter estava morto. Isso o alegrava. Sequer se perguntava quem o teria feito. Não se importava. O que passou, passou, e tudo que ele tinha de fazer era viver com isso. Procurar esquecer. Sobre Valter, sobre sua infância com ele, sobre o que nunca devia ter feito. Trancar essas memórias numa sala a prova de som e jogar a chave fora. Custasse o que custasse.

6

“Já pensou na possibilidade de ele ter levado algum dos livros?” Pedro despejou assim que Amarante subiu novamente.

“Por que diz isso?”

“Bem, tem alguns pontos nas fileiras em que o espaço entre um livro e outro é bem maior que o comum. Pode não ser nada. Só chamou minha atenção.”

“Se isso aconteceu,” disse Amarante “não foi um assalto comum. Um cara tem que saber pra quem vender livros como esses, não é a coisa mais fácil do mundo. Se algo daí realmente foi levado, o assassino deve ser desse meio, ou ao menos saber um pouco sobre o ramo.”

O fotografo prosseguia com seu trabalho. Amarante aproveitou para ir ao banheiro. Jogou um pouco de água no rosto e se olhou no espelho. Achava que Vinícius estava escondendo alguma coisa, e nem precisava perguntar para saber que Pedro partilhava dessa opinião. Mas se viu pensando novamente em Valter e na forte possibilidade de tê-lo tido como um colega de infância. Aquilo o incomodava, não exatamente por ele estar morto, mas por ter iniciado algo dentro de sua mente. Começara com discreta lentidão, mas após a conversa de ainda há pouco com Vinícius, sua memória estava pulsando. Algo queria saltar do esquecimento e mostrar o rosto. Amarante ainda não conseguia discernir o que era, mas achava que em algum momento irromperia.

Lembrou que na sala, lá embaixo, havia um móvel com diversos porta-retratos. Pediu licença e desceu novamente. Era tarde e ele não se sentia cansado. Era estranho, mas estava aceso, tenso. Aproximou-se das fotografias amareladas pelos anos, correndo os olhos pelas imagens.

Não demorou muito para encontrar o que procurava: uma fotografia de Valter, criança. Então algo em Amarante se agitou. E ele viu.

O choque o fez estender as mãos trêmulas para pegar a foto que mostrava o menino sorridente com uma bola debaixo do braço. Aquele rosto inocente e alegre trouxe tudo de volta; desenterrou o escondido, escancarou o armário e revelou seus esqueletos.

Amarante lembrou-se de Valter. De sua tia, a quem ele chamava de mãe, aquela senhora baixinha e morena. Sua casa ficava no início da vila, e entre ela e a de Valter, havia a do seu Luís Carlos, aquele homem grande e rechonchudo, que gostava de contar piadas ás crianças da vila, fazer imitações de bichos engraçados, encher as bolas dos meninos quando estas estavam murchas, dar-lhes pacotinhos de balas. Era um sujeito de quem todos gostavam, simpático e alegre.

Um dia, ele chamou Augusto e Valter, à sua casa.

O estômago de Amarante se embrulhou.

Ele se lembrou da visita. Ele e Valter. Deus. Como aquilo ficara calado por tanto tempo?

O quarto do homem. Seu convite para entrarem. Está tudo bem, ele dizia. Somos amigos, não somos? Amigos especiais.

Amarante despencou no sofá, e deixou-se ficar ali, um grito entalado no peito ameaçando encontrar o caminho garganta a fora.

Em algum momento, ele esquecera. Bloqueara. Ou sempre soube que estava ali, descansando debaixo da superfície, entre camadas de poeira? Não importava. A lembrança que em algum ponto da vida conseguira cauterizar estava de novo viva, palpitando por trás de seus olhos.

“Amarante?” Pedro, na entrada da sala. “Que porra aconteceu com você?”

Amarante se levantou, pôs a fotografia de volta no lugar e respirou fundo.

“Nada,” disse. “Não aconteceu nada.”

* * *

“Eu estava nervoso, tremendo. Mas precisava do dinheiro. Quero que vocês entendam isso. Precisava dele pra me reerguer. Meu Deus... Eu entrei no terreno e segui até a árvore. Eu sou pequeno, foi fácil subir. A arma era fria contra a minha barriga. Eu quase desisti. Quando faltava só mais um galho para alcançar a janela, eu tive prestes a voltar. Antes tivesse feito isso. Mas eu continuei. Quando estava bem de frente pra ela, vi movimento lá dentro. Agora era tarde demais pra voltar, tarde demais pra me arrepender. Eu saquei a arma e apontei. Mandei ficar quieto. E só então vi quem estava lá dentro.”

7

Mais tarde naquele dia, o corpo foi retirado e a perícia passou um pente fino no quarto. O notebook de Valter estava sendo examinado e uma apólice de seguro cujos beneficiários eram Margarida Romão de Souza e seu filho, Vinícius. Amarante apresentou os fatos apurados ao delegado titular, pegou suas coisas e saiu da delegacia em direção ao estacionamento. Pedro o aguardava. Moravam próximos um do outro, e Amarante costumava lhe dar uma carona.

Enquanto entrava no carro e dava a partida, sentia-se em frangalhos. A madrugada o esmagara. Muito do como percebia a si mesmo havia mudado, e ele sabia que o assassinato de Valter o assombraria por muito tempo.

Mas, ainda assim, queria resolvê-lo.

“Aquele celular pro qual a vítima ligou,” disse a Pedro. “Tente de novo.”

“Você tá bem?”

Não. Ele não estava. Amarante sequestrou o celular de Pedro da mão do amigo. Procurou pelos números recém discados e encontrou o que procurava. Mandou chamar e esperou. Pedro o encarava, preocupado. “A coisa não está mais nas suas mãos, Amarante. Meu Deus, a gente só estava de plantão.”

Amarante ignorou-o. Após oito toques, alguém atendeu.

“Alô?”

“Com quem eu estou falando, por favor?”

Um breve silêncio. Então, uma voz um tanto anasalada: “É o Cido. Cidinho. Quem é?”

“Cidinho,” disse Amarante. “Cidinho, prazer. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas.”

“Quem está falando?” Amarante viu-se por um instante sem saber o que dizer. O tom de Cidinho fora desconfiado. Demorou a responder. Gaguejou.

Do outro lado da linha, desligaram.

“Filho da puta. Merda.” Tentou novamente. Chamada bloqueada. “Porra!”

Pedro estava calado. Parecia tentar puxar algo pela memória. Amarante prosseguia amaldiçoando Deus e o mundo.

“Peraí. Cidinho? Era esse o nome do cara?”

“O quê? É, sim. Foi o que ele disse.”

“Ele tinha uma voz fanha, fina?”

Amarante olhou para ele. “Como é que você sabe disso?”

“Acho que sei que Cidinho é esse. Ou pelo menos tenho uma boa ideia. Já prendi um cara com esse nome daqui do bairro por assalto faz uns anos, mas ele saiu, fanho até não poder mais. E acho que sei de um lugar onde podemos encontra-lo.”

Amarante ligou o carro. “Vá dando as instruções.”

“Amarante, a gente tava só de plantão. O assunto não é nosso.”

“Você é surdo ou o quê?!”

O bar ficava num bairro próximo, numa rua escondida entre casas velhas e ladeiras que davam acesso a morros. Pedro ia calado no banco do carona, enquanto Amarante dirigia como um louco. Pararam na calçada oposta. “Vamos.” Saíram e atravessaram. Amarante sequer olhava para os lados.

O lugar era pequeno, mesas dobráveis espalhadas sem nenhuma organização. De trás de um balcão, um homem arregalou os olhos, vendo imediatamente que eram policiais. Algumas pessoas têm essa habilidade. A maioria das mesas estava desocupada – ainda eram onze da manhã – mas um ou outro bebum profissional já estava a postos. Amarante levantou a voz: “Cidinho. Tem algum Cidinho aqui?” O homem detrás do balcão estava nervoso.

“Ele está ali,” disse a voz de Pedro, atrás dele, apontando para o homem pequeno sentado ao fundo. Amarante percebeu o pomo-de-adão do homenzinho subindo e descendo em câmera lenta. Ainda assim, ele tentou conservar um pouco da dignidade.

“Quem quer falar comigo, porra?”

Amarante reconheceu a voz de imediato. “Eu tentei pelo celular, mas você desligou. Polícia. Agora vamos conversar. Sobre Valter Romão.”

“Eu não sei de nada. Nem sei quem é esse cara aí.”

Uma hora depois, após com o nariz ensanguentado, ele começou a contar.

“Quando eu o vi lá dentro, pensei que tudo não tinha passado de uma brincadeira. Uma sacanagem com a minha cara. Ele, lá, parado, calmo, como se tudo estivesse normal. ‘Que porra é essa?!’, eu perguntei. Ele me ajudou a entrar. Eu estava furioso. Ele pediu que eu me acalmasse e seguisse com o plano. ‘Você é louco. Completamente louco,’ eu falei. Ele se justificou dizendo que se tivesse dito desde o começo que ele mesmo era o alvo, eu nunca teria aceitado. Por isso era melhor que eu pensasse que se tratava de algum inimigo dele, alguém que não fazia diferença pra mim. ‘Mas por quê?’ eu perguntei. Ele ficou em silêncio por um bom tempo.

“O quarto estava todo desarrumado. Depois ele me disse que isso fazia parte do plano: era pra fazer parecer um assalto. Com o cofre aberto e tudo mais... bom, isso foi depois. Ele estava lá calado e eu tentando me controlar para não começar a berrar com ele. Entendam, eu gostava do sujeito. Ele falava comigo como gente. Isso é mais do que eu recebo todo o dia.

‘Cido, eu tenho molestado crianças por dez anos.’ Foi o que ele falou, olhando direto nos meus olhos. A voz dele tremeu. ‘Eu não consigo parar. Por isso você precisa atirar em mim. Ali naquela sacola estão alguns livros, junto com o resto do dinheiro. Leve. Todo mundo precisa pensar que isso foi um assalto, e que eu reagi ou coisa assim, e por isso acabei morto. Minha tia e meu primo vão receber o dinheiro do seguro. Eles vão ficar bem. Tudo vai ficar melhor sem mim aqui. Eu sou um monstro e não consigo deixar de ser. Por favor, atire em mim’.

Eu nunca pensei que ia ouvir aquilo dele. Um cara que abusava de crianças! Me dava nojo só de pensar. Mas eu não conseguia. Levantei e comecei a andar pra lá e pra cá, nervoso. Ele também se levantou, ao lado da cama. ‘Está tudo acertado. Vão olhar essa bagunça e vão achar que foi um roubo. Anda, atire’. Eu disse que não. Ele ficou furioso. Parecia que ia começar a chorar. Falou alto, gritando mesmo. Que nós tínhamos um pacto e não era correto quebra-lo. Eu tremia de cima a baixo. A arma pesada na minha mão.

‘Dez anos,’ ele disse. ‘Tempo demais. Eu não quero mais isso. Eu destruí o meu primo. Eu sou igual ao monstro que me destruiu. Anda. Atira. Atira em mim AGORA!’

Meu Deus, me perdoa... me perdoa, Senhor...

Eu fechei os olhos e apertei o gatilho. A cabeça dele explodiu e o sangue voou na parede. Ele caiu morto. Meu Deus, ele caiu.

Vocês me entendem? Hã? Entendem?

Meu Deus, meu Deus, meu Deus...”

Eles deixaram Cido em sua casa. Amarante pediu desculpas pelos socos e por perder a cabeça. O homem estava abatido e somente assentiu. O coração de Pedro ainda martelava a lembrança do companheiro cego de ódio, partindo para cima do suspeito que respondia com negativas às perguntas dos dois. Fora um interrogatório criminoso, e aquilo lhe deixara um gosto amargo na boca.

“Eu sou igual ao monstro que me destruiu,” disse Amarante baixinho. Então pôs o carro para rodar. Era possível que alguém tivesse visto ou ouvido alguma coisa, mas, estando na vizinhança em que estavam, ele achava difícil que alguma denúncia fosse feita.

“O que foi aquilo lá dentro?”, perguntou.

O olhar de Amarante era um poço de vazio. Não parecia prestar atenção sequer na rua pela qual trafegava. Ele não respondeu àquela pergunta. Pedro se perguntou se saberia, um dia.

“Não vamos mesmo contar a ninguém?”

“Nós prometemos. Se contarmos, aquela família perde o seguro. É o mínimo que eles merecem depois do que ele fez com o garoto.”

“Você acredita mesmo nessa história?”

Amarante se lembrou de Vinícius naquela madrugada. Dezessete anos e ainda na oitava série. Repetências seguidas. E um homérico pouco caso com a morte do primo.

“Sim.”

“Meu Deus. Isso é loucura.”

Era. Ele pegara o celular que estava com Cido e se desfaria dele, de modo que a polícia não pudesse contatá-lo e descobrir seu papel na história. Era um aparelho conseguido de forma ilícita, de modo que seria inútil tentar chegar até o assassino de Valter através do registro do número na empresa de telefonia móvel. Ele não estava certo se aquela era a coisa certa a fazer, mas a faria mesmo assim.

Pensou na foto de Valter. Sorriso. Bola debaixo do braço. Luís Carlos. Venham aqui, venham. Não vai demorar.

Ele conseguira esquecer. Valter não. E aquilo os moldara, os tornara quem eram.

Amarante se concentrou no caminho a sua frente. Sabia agora mais sobre si do que gostaria, mas é o preço que se paga pela verdade. Era tarde demais para esquecer.

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