4
A quitinete estava em total desordem. O quarto era grande o bastante para conter a cama de solteiro, uma escrivaninha sobre a qual repousava um notebook, alguns livros e um cinzeiro lotado; uma cômoda de madeira que já conhecera dias melhores, uma televisão de 14 polegadas no canto e uma estante baixa, cujas prateleiras abarrotadas atraíram a atenção de Amarante. Era uma baderna: as gavetas estavam abertas, camisas, calças, cuecas espalhadas pelo chão.
O fotografo explorava novos ângulos, e a câmera pipocava em flashes de tempos em tempos. Foram batidas fotos do ferimento à bala, da arma abandonada em meio ao sangue, das manchas vermelhas que jorraram na parede. Amarante e Pedro observavam do limitar da porta, aguardando o momento em que poderiam abrir gavetas, remexer roupas, procurar por pistas sem contaminar a cena do crime.
Amarante conversara longamente com a mãe de Vinícius, Margarida. A voz dela fazia ecoar alguma lembrança distante que ele não procurou avivar. Foi objetivo. A mulher estava atônita, falando rápido demais, temendo que estivessem de alguma forma constrangendo seu filho; ele a tranquilizou. Em seguida, recolheu o máximo de informações que pôde.
Valter era sobrinho da mulher, filho de uma irmã mais velha que morrera de câncer e um pai que ninguém jamais soube quem era. Ela o criara desde seu quarto ano de vida, e Valter tinha seus dezoito quando o falecido marido de Margarida lhe deu seu primeiro e único filho legítimo, Vinícius.
Valter tivera uma infância e uma adolescência problemática. Saíra de casa para morar sozinho aos 20, mas voltaria seis anos depois. No meio tempo em que estivera fora, a quitinete nos fundos fora construída, e ele passou a morar ali, mediante aluguel. Passara um tempo entrando e saindo de vários empregos, mas há alguns anos se estabelecera naquela coisa de negociar livros velhos; saía pelos sebos da cidade à caça de alguma edição rara que se passasse por velharia, adquiria-a e então a repassava para colecionadores ou mesmo outros vendedores por uma quantia superior àquela que pagara inicialmente. Vinha conseguindo se manter, ao menos.
A mulher não vira muito o sobrinho nos últimos dias. Segunda ela, mantivera-se no quarto na maior parte do tempo, ou então estava fora. Esclareceram também que Margarida saíra de casa por volta das seis, deixando a janta pronta; Valter estava vivo nesse horário, pois despedira-se dela. Não notara nada de estranho ou anormal no comportamento do sobrinho. Em dado momento da conversa, ela começou a soluçar de choro.
Combinaram que Margarida falaria com o delegado pela manhã. Amarante não estaria à frente do caso, uma vez que era apenas o investigador de plantão. Quando se despediram, o pranto da mulher prosseguia.
César, da balística, franziu o cenho enquanto olhava para dentro da primeira gaveta da cômoda. Então chamou o outro e pediu aquilo fosse fotografado. Amarante e Pedro se aproximaram.
Bem no canto, ao lado de um pequeno amontoado de camisas bagunçadas, havia um cofre de ferro cinza, sua tampa aberta escancarando o interior vazio. Os quatro homens se entreolharam.
“Hum,” fez Pedro. “O cara entra, ameaça o tal Valter com a arma, pega o que está aqui dentro, dá o trabalho por encerrado e, antes de sair, bum, atira no cara. Isso, ou o assassino sabia a combinação.”
César apontou para a parada oposta.“Ele pode muito bem ter entrado por aquela janela ali.”
“Pode. Dá num terreno baldio. O cara só teria que ser bem ágil,” disse Amarante.
“E não muito grande. Bom, mas isso não é comigo. O que eu posso dizer é que não achei capsula nenhuma, o que só confirma o óbvio. O assassino usou aquela mesma trinta-e-oito semiautomática bem ali. O ferimento é compatível com o estrago que esse tipo de arma faz. Só falta saber por que deixou a arma aqui.”
O fotografo terminara e ofereceu um par de luvas para cada um dos policiais, que cingiram as mãos de borracha branca. A primeira coisa que Amarante fez foi pegar o celular de Valter e checar as últimas ligações. Segundo constava, a última ligação executada pelo morto ocorrera às 21:12 da noite passada. Pedro sacou o próprio celular do bolso e copiou o número exibido na tela do aparelho de Valter.
“Vamos ver se damos sorte.” Esperou com o telefone colado ao ouvido, mas ao cabo de um minuto, desistiu, dando de ombros. “Tentamos de novo mais cedo.”
Todas as gavetas haviam sido reviradas. Amarante não encontrou nada mais que chamasse sua atenção na cômoda e passou os olhos pelo restante do quarto. Nas gavetas da escrivaninha, mais livros velhos, um ou outro DVD pornô, moedas.
Amarante parou ao pé da cama e olhou novamente para o corpo. A época, calculou, era a mesma. Talvez um dia eles tivessem estado juntos naquela vila, quem sabe disputando quem tinha a maior coleção de bolinhas de gude, ou jogando bola, sendo crianças. O tempo passa e faz esquecer. Olhou para a janela. Sim, era perfeitamente possível entrar por ali. Pela desarrumação no quarto, alguém estivera procurando por algo, o que indicava uma possível motivação para o crime; o cofre vazio a fortalecia. Latrocínio? Era o que parecia, mas ele não estava convencido.
“Se ele tinha a arma e o dono do quarto juntos, por que a bagunça?” Pedro olhou para ele. “Ele ameaçou o cara para que abrisse o cofre; tudo bem, isso parece lógico. Mas por que as roupas estão remexidas dessa forma?”
“Como assim?”
“Ele tinha o cara nas mãos. Era só manda-lo entregar o que tinha de valor, e pronto. Quer dizer, a vítima devia saber onde estavam as coisas no próprio quarto. Iria diretamente a elas. Não precisaria procurar, certo?”
Pedro refletiu sobre aquilo.
“Bem, teoricamente não. Mas o cara pode ter ficado nervoso. Acontece quando tem uma arma apontada pra sua cara.”
Amarante coçou a cabeça. “Pode até ser. Mas... não sei. Será que o garoto sabe o que tinha dentro desse cofre?”
5
Pancadas na porta. Vinícius se assustou. Abriu os olhos debaixo da coberta com a firme sensação de que era ele. Que ele tinha voltado para cobrar-lhe algumas explicações. Por que você não está triste por mim, Vinícius? Pensei que fôssemos melhores que isso. Pensei que fôssemos amigos especiais.
Amigos especiais. Ele não o ouvia dizer aquilo há anos, mas as palavras soaram nítidas e próximas em sua memória. Novas batidas. O momento de temor passou. Ele cambaleou da cama e abriu a porta.
“Você me acordou.”
Era o tal Augusto. Ele o mediu de cima a baixo, a cara fechada. “Seu primo tinha um cofre. Ele está aberto e vazio dentro de uma das gavetas da cômoda. Sabe o que tinha dentro?”
“Hum,” fez Vinícius, soltando um bocejo. “Cofre?”
“Um cofre cinza, leve, pequeno. Você nunca o viu?”
“Não. Nunca vi.”
O investigador tencionou os lábios, com um pouco de irritação.
“Sabe se ele guardava dinheiro ou alguma outra coisa de valor no quarto? Ele tinha carteira, cartões de crédito, talões de cheque?”
“Devia ter, eu não sei, ele não ficava me mostrando. Olha, a única coisa valiosa lá em cima são aqueles livros velhos que ele vendia, pelo que eu sei. E ainda assim nem todos. Era disso que ele vivia. Escuta, posso dormir em paz agora?”
Os olhos de Augusto se estreitaram por baixo das sobrancelhas espessas e seu semblante grave pareceu se adensar. Ele fez um gesto de cabeça, deu as costas e se foi, calado e sombrio. Vinícius fechou a porta e voltou a se jogar na cama.
Amigos especiais, dissera Valter. Fazia muito tempo. Vinícius se encolheu sob a coberta e cerrou os olhos. Mentira acerca da arma porque não queria se envolver. Valter estava morto. Isso o alegrava. Sequer se perguntava quem o teria feito. Não se importava. O que passou, passou, e tudo que ele tinha de fazer era viver com isso. Procurar esquecer. Sobre Valter, sobre sua infância com ele, sobre o que nunca devia ter feito. Trancar essas memórias numa sala a prova de som e jogar a chave fora. Custasse o que custasse.
6
“Já pensou na possibilidade de ele ter levado algum dos livros?” Pedro despejou assim que Amarante subiu novamente.
“Por que diz isso?”
“Bem, tem alguns pontos nas fileiras em que o espaço entre um livro e outro é bem maior que o comum. Pode não ser nada. Só chamou minha atenção.”
“Se isso aconteceu,” disse Amarante “não foi um assalto comum. Um cara tem que saber pra quem vender livros como esses, não é a coisa mais fácil do mundo. Se algo daí realmente foi levado, o assassino deve ser desse meio, ou ao menos saber um pouco sobre o ramo.”
O fotografo prosseguia com seu trabalho. Amarante aproveitou para ir ao banheiro. Jogou um pouco de água no rosto e se olhou no espelho. Achava que Vinícius estava escondendo alguma coisa, e nem precisava perguntar para saber que Pedro partilhava dessa opinião. Mas se viu pensando novamente em Valter e na forte possibilidade de tê-lo tido como um colega de infância. Aquilo o incomodava, não exatamente por ele estar morto, mas por ter iniciado algo dentro de sua mente. Começara com discreta lentidão, mas após a conversa de ainda há pouco com Vinícius, sua memória estava pulsando. Algo queria saltar do esquecimento e mostrar o rosto. Amarante ainda não conseguia discernir o que era, mas achava que em algum momento irromperia.
Lembrou que na sala, lá embaixo, havia um móvel com diversos porta-retratos. Pediu licença e desceu novamente. Era tarde e ele não se sentia cansado. Era estranho, mas estava aceso, tenso. Aproximou-se das fotografias amareladas pelos anos, correndo os olhos pelas imagens.
Não demorou muito para encontrar o que procurava: uma fotografia de Valter, criança. Então algo em Amarante se agitou. E ele viu.
O choque o fez estender as mãos trêmulas para pegar a foto que mostrava o menino sorridente com uma bola debaixo do braço. Aquele rosto inocente e alegre trouxe tudo de volta; desenterrou o escondido, escancarou o armário e revelou seus esqueletos.
Amarante lembrou-se de Valter. De sua tia, a quem ele chamava de mãe, aquela senhora baixinha e morena. Sua casa ficava no início da vila, e entre ela e a de Valter, havia a do seu Luís Carlos, aquele homem grande e rechonchudo, que gostava de contar piadas ás crianças da vila, fazer imitações de bichos engraçados, encher as bolas dos meninos quando estas estavam murchas, dar-lhes pacotinhos de balas. Era um sujeito de quem todos gostavam, simpático e alegre.
Um dia, ele chamou Augusto e Valter, à sua casa.
O estômago de Amarante se embrulhou.
Ele se lembrou da visita. Ele e Valter. Deus. Como aquilo ficara calado por tanto tempo?
O quarto do homem. Seu convite para entrarem. Está tudo bem, ele dizia. Somos amigos, não somos? Amigos especiais.
Amarante despencou no sofá, e deixou-se ficar ali, um grito entalado no peito ameaçando encontrar o caminho garganta a fora.
Em algum momento, ele esquecera. Bloqueara. Ou sempre soube que estava ali, descansando debaixo da superfície, entre camadas de poeira? Não importava. A lembrança que em algum ponto da vida conseguira cauterizar estava de novo viva, palpitando por trás de seus olhos.
“Amarante?” Pedro, na entrada da sala. “Que porra aconteceu com você?”
Amarante se levantou, pôs a fotografia de volta no lugar e respirou fundo.
“Nada,” disse. “Não aconteceu nada.”
* * *
“Eu estava nervoso, tremendo. Mas precisava do dinheiro. Quero que vocês entendam isso. Precisava dele pra me reerguer. Meu Deus... Eu entrei no terreno e segui até a árvore. Eu sou pequeno, foi fácil subir. A arma era fria contra a minha barriga. Eu quase desisti. Quando faltava só mais um galho para alcançar a janela, eu tive prestes a voltar. Antes tivesse feito isso. Mas eu continuei. Quando estava bem de frente pra ela, vi movimento lá dentro. Agora era tarde demais pra voltar, tarde demais pra me arrepender. Eu saquei a arma e apontei. Mandei ficar quieto. E só então vi quem estava lá dentro.”
7
Mais tarde naquele dia, o corpo foi retirado e a perícia passou um pente fino no quarto. O notebook de Valter estava sendo examinado e uma apólice de seguro cujos beneficiários eram Margarida Romão de Souza e seu filho, Vinícius. Amarante apresentou os fatos apurados ao delegado titular, pegou suas coisas e saiu da delegacia em direção ao estacionamento. Pedro o aguardava. Moravam próximos um do outro, e Amarante costumava lhe dar uma carona.
Enquanto entrava no carro e dava a partida, sentia-se em frangalhos. A madrugada o esmagara. Muito do como percebia a si mesmo havia mudado, e ele sabia que o assassinato de Valter o assombraria por muito tempo.
Mas, ainda assim, queria resolvê-lo.
“Aquele celular pro qual a vítima ligou,” disse a Pedro. “Tente de novo.”
“Você tá bem?”
Não. Ele não estava. Amarante sequestrou o celular de Pedro da mão do amigo. Procurou pelos números recém discados e encontrou o que procurava. Mandou chamar e esperou. Pedro o encarava, preocupado. “A coisa não está mais nas suas mãos, Amarante. Meu Deus, a gente só estava de plantão.”
Amarante ignorou-o. Após oito toques, alguém atendeu.
“Alô?”
“Com quem eu estou falando, por favor?”
Um breve silêncio. Então, uma voz um tanto anasalada: “É o Cido. Cidinho. Quem é?”
“Cidinho,” disse Amarante. “Cidinho, prazer. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas.”
“Quem está falando?” Amarante viu-se por um instante sem saber o que dizer. O tom de Cidinho fora desconfiado. Demorou a responder. Gaguejou.
Do outro lado da linha, desligaram.
“Filho da puta. Merda.” Tentou novamente. Chamada bloqueada. “Porra!”
Pedro estava calado. Parecia tentar puxar algo pela memória. Amarante prosseguia amaldiçoando Deus e o mundo.
“Peraí. Cidinho? Era esse o nome do cara?”
“O quê? É, sim. Foi o que ele disse.”
“Ele tinha uma voz fanha, fina?”
Amarante olhou para ele. “Como é que você sabe disso?”
“Acho que sei que Cidinho é esse. Ou pelo menos tenho uma boa ideia. Já prendi um cara com esse nome daqui do bairro por assalto faz uns anos, mas ele saiu, fanho até não poder mais. E acho que sei de um lugar onde podemos encontra-lo.”
Amarante ligou o carro. “Vá dando as instruções.”
“Amarante, a gente tava só de plantão. O assunto não é nosso.”
“Você é surdo ou o quê?!”
O bar ficava num bairro próximo, numa rua escondida entre casas velhas e ladeiras que davam acesso a morros. Pedro ia calado no banco do carona, enquanto Amarante dirigia como um louco. Pararam na calçada oposta. “Vamos.” Saíram e atravessaram. Amarante sequer olhava para os lados.
O lugar era pequeno, mesas dobráveis espalhadas sem nenhuma organização. De trás de um balcão, um homem arregalou os olhos, vendo imediatamente que eram policiais. Algumas pessoas têm essa habilidade. A maioria das mesas estava desocupada – ainda eram onze da manhã – mas um ou outro bebum profissional já estava a postos. Amarante levantou a voz: “Cidinho. Tem algum Cidinho aqui?” O homem detrás do balcão estava nervoso.
“Ele está ali,” disse a voz de Pedro, atrás dele, apontando para o homem pequeno sentado ao fundo. Amarante percebeu o pomo-de-adão do homenzinho subindo e descendo em câmera lenta. Ainda assim, ele tentou conservar um pouco da dignidade.
“Quem quer falar comigo, porra?”
Amarante reconheceu a voz de imediato. “Eu tentei pelo celular, mas você desligou. Polícia. Agora vamos conversar. Sobre Valter Romão.”
“Eu não sei de nada. Nem sei quem é esse cara aí.”
Uma hora depois, após com o nariz ensanguentado, ele começou a contar.
“Quando eu o vi lá dentro, pensei que tudo não tinha passado de uma brincadeira. Uma sacanagem com a minha cara. Ele, lá, parado, calmo, como se tudo estivesse normal. ‘Que porra é essa?!’, eu perguntei. Ele me ajudou a entrar. Eu estava furioso. Ele pediu que eu me acalmasse e seguisse com o plano. ‘Você é louco. Completamente louco,’ eu falei. Ele se justificou dizendo que se tivesse dito desde o começo que ele mesmo era o alvo, eu nunca teria aceitado. Por isso era melhor que eu pensasse que se tratava de algum inimigo dele, alguém que não fazia diferença pra mim. ‘Mas por quê?’ eu perguntei. Ele ficou em silêncio por um bom tempo.
“O quarto estava todo desarrumado. Depois ele me disse que isso fazia parte do plano: era pra fazer parecer um assalto. Com o cofre aberto e tudo mais... bom, isso foi depois. Ele estava lá calado e eu tentando me controlar para não começar a berrar com ele. Entendam, eu gostava do sujeito. Ele falava comigo como gente. Isso é mais do que eu recebo todo o dia.
‘Cido, eu tenho molestado crianças por dez anos.’ Foi o que ele falou, olhando direto nos meus olhos. A voz dele tremeu. ‘Eu não consigo parar. Por isso você precisa atirar em mim. Ali naquela sacola estão alguns livros, junto com o resto do dinheiro. Leve. Todo mundo precisa pensar que isso foi um assalto, e que eu reagi ou coisa assim, e por isso acabei morto. Minha tia e meu primo vão receber o dinheiro do seguro. Eles vão ficar bem. Tudo vai ficar melhor sem mim aqui. Eu sou um monstro e não consigo deixar de ser. Por favor, atire em mim’.
Eu nunca pensei que ia ouvir aquilo dele. Um cara que abusava de crianças! Me dava nojo só de pensar. Mas eu não conseguia. Levantei e comecei a andar pra lá e pra cá, nervoso. Ele também se levantou, ao lado da cama. ‘Está tudo acertado. Vão olhar essa bagunça e vão achar que foi um roubo. Anda, atire’. Eu disse que não. Ele ficou furioso. Parecia que ia começar a chorar. Falou alto, gritando mesmo. Que nós tínhamos um pacto e não era correto quebra-lo. Eu tremia de cima a baixo. A arma pesada na minha mão.
‘Dez anos,’ ele disse. ‘Tempo demais. Eu não quero mais isso. Eu destruí o meu primo. Eu sou igual ao monstro que me destruiu. Anda. Atira. Atira em mim AGORA!’
Meu Deus, me perdoa... me perdoa, Senhor...
Eu fechei os olhos e apertei o gatilho. A cabeça dele explodiu e o sangue voou na parede. Ele caiu morto. Meu Deus, ele caiu.
Vocês me entendem? Hã? Entendem?
Meu Deus, meu Deus, meu Deus...”
Eles deixaram Cido em sua casa. Amarante pediu desculpas pelos socos e por perder a cabeça. O homem estava abatido e somente assentiu. O coração de Pedro ainda martelava a lembrança do companheiro cego de ódio, partindo para cima do suspeito que respondia com negativas às perguntas dos dois. Fora um interrogatório criminoso, e aquilo lhe deixara um gosto amargo na boca.
“Eu sou igual ao monstro que me destruiu,” disse Amarante baixinho. Então pôs o carro para rodar. Era possível que alguém tivesse visto ou ouvido alguma coisa, mas, estando na vizinhança em que estavam, ele achava difícil que alguma denúncia fosse feita.
“O que foi aquilo lá dentro?”, perguntou.
O olhar de Amarante era um poço de vazio. Não parecia prestar atenção sequer na rua pela qual trafegava. Ele não respondeu àquela pergunta. Pedro se perguntou se saberia, um dia.
“Não vamos mesmo contar a ninguém?”
“Nós prometemos. Se contarmos, aquela família perde o seguro. É o mínimo que eles merecem depois do que ele fez com o garoto.”
“Você acredita mesmo nessa história?”
Amarante se lembrou de Vinícius naquela madrugada. Dezessete anos e ainda na oitava série. Repetências seguidas. E um homérico pouco caso com a morte do primo.
“Sim.”
“Meu Deus. Isso é loucura.”
Era. Ele pegara o celular que estava com Cido e se desfaria dele, de modo que a polícia não pudesse contatá-lo e descobrir seu papel na história. Era um aparelho conseguido de forma ilícita, de modo que seria inútil tentar chegar até o assassino de Valter através do registro do número na empresa de telefonia móvel. Ele não estava certo se aquela era a coisa certa a fazer, mas a faria mesmo assim.
Pensou na foto de Valter. Sorriso. Bola debaixo do braço. Luís Carlos. Venham aqui, venham. Não vai demorar.
Ele conseguira esquecer. Valter não. E aquilo os moldara, os tornara quem eram.
Amarante se concentrou no caminho a sua frente. Sabia agora mais sobre si do que gostaria, mas é o preço que se paga pela verdade. Era tarde demais para esquecer.