quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Resenha: REI RATO - China Miéville

China Miéville é um escritor que comumente tem o nome associado a um subgênero relativamente novo da literatura fantástica conhecido como new weird. O romance de estreia do inglês, “Rei Rato” (Tarja Editorial, 400 páginas), lançado originalmente em 1998, acaba de ser publicado no Brasil numa elegantíssima edição, marcando a chegada de um dos autores mais alardeados da última década ao nosso mercado. “Perdido Street Station”, seu segundo livro, considerado uma obra-prima e espécime perfeito do que é o new weird já está sendo traduzido pelo mesmo Alexandre Mandarino que cuidou de “Rei Rato” – e já tem endereço certo na minha estante, ao julgar pela qualidade que encontrei neste primeiro trabalho do cara.

O cenário é Londres, e nosso protagonista, Saul Garamond, um jovem de vinte e poucos anos que é levado pela polícia para interrogatórios na fria manhã em que seu pai cai da janela do apartamento onde morava. Abalado, confuso e visto como um suspeito de assassinato, Saul é liberto de sua cela por uma estranha e fedorenta figura que se move furtivamente e fala no jargão cockney (espécie de dialeto do East End de Londres), uma figura amarga que se autoproclama Rei Rato e lhe conta segredos de seu passado. Saul tem sangue de rato nas veias, faz parte da realeza, e os bueiros e esgotos da cidade passam a ser sua morada com Rei Rato, que planeja uma vingança há muito atrasada contra um misterioso e malévolo inimigo.

A trama se concentra, num primeiro momento, na passagem de Saul para seu novo mundo: os becos sujos, as esquinas escuras, os telhados e calhas, os caminhos sinuosos da rede de esgoto, os cantos da cidade para os quais se evita olhar e onde as sombras camuflam o movimento agora lhe são familiares, compondo seu novo lar. Miéville é extremamente competente em suas descrições de Londres não somente no sentido da ambientação em si, mas também em expressar a transformação da cidade aos olhos de Saul – transformação esta que se confunde com sua própria. Sua identidade de rato lhe confere habilidades e características como furtividade, rapidez e força, ao mesmo tempo em que o transformam num clandestino, um rabisco imperceptível à sombra dos prédios e por sobre os telhados. O conflito das duas naturezas de Saul, o afastamento que sua nova condição exige versus a necessidade de contato com pessoas normais é um dos elementos mais bem trabalhados de “Rei Rato”. O momento em que Saul trava um diálogo com uma sem-teto portadora de problemas mentais ilustra muito bem seu estado de solidão e o desejo por elos verdadeiros e humanos, em contraste com a sujeira em suas roupas e a horda de seres rastejantes que o segue.

Em contraste, Rei Rato abraça inteiramente seu lado animal, mostrando-se sempre mais rápido, mais forte, mais cheio de si. Orgulho, ambição e desejo por poder o governam, o que o coloca no extremo oposto de Saul. Sua “sala do trono” – uma espécie de aposento real bem no meio dos esgotos de Londres, com direito a um trono – é a amostra perfeita de sua personalidade arrogante e ufanista. Em paralelo, Saul não consegue se imaginar vivendo como o mentor – e não podemos deixar de nos perguntar à medida que a leitura prossegue se Saul irá se tornar ele mesmo um novo Rei.

A trama guarda boas surpresas, principalmente no que se refere ao passado de Rei Rato, Saul e seu pai morto. Uma reviravolta em particular é bastante previsível, o que não atrapalha, já que o autor é sensato o suficiente para não apoiar a história sobre ela. Dois amigos de Saul, Fabian e Natasha, têm papéis importantíssimos, sobretudo no clímax, e os emblemáticos Loplop, senhor dos pássaros, e Anansi, mestre das aranhas, também figuram entre os curiosos personagens principais. Miéville concede particularidades a cada uma das figuras que cruzam suas páginas, fazendo com que soem imprevisíveis, exóticas, espirituosas, nunca aborrecidas ou tediosas.

Mas o maior mérito do autor sem dúvida foi ter criado para Saul uma nêmesis verdadeiramente ameaçadora. (Não vou dizer aqui quem é o vilão da história, pois considero um pequeno spoiler, mas trata-se de um personagem que remete a certa lenda europeia transformada em conto pelos Irmãos Grimm.) Acompanhando suas ações permeadas por crueldade e total desprezo pela vida humana e constatando a todo momento seu enorme poder, realmente tememos pelo destino de Saul quando chegar o momento da batalha final entre os dois – o que tempera o clímax com boas doses de expectativa e suspense.

E falando no clímax, este que não funcionaria sem outro personagem constante nas páginas de “Rei Rato”: o drum and bass, estilo de música eletrônica surgido em meados dos anos 90, derivado do jungle, caracterizado pela presença constante de linhas de baixo e batidas rápidas. Se Miéville mostra-se inspirado em suas descrições da selva urbana londrina, parece ainda mais solto ao dissecar em detalhes os elementos que dão forma ao drum and bass, sobretudo nas sequências em que Natasha está presente (a amiga de Saul é também uma DJ). Muito mais que apenas estilo musical, o D&B constitui toda uma subcultura, com seus jargões, gírias, formas de comportamento. A forma como a música se incorpora à trama é admirável, justificando todo o tempo dedicado a expô-la, desnudá-la, exibi-la da maneira mais elaborada possível.

Escrito numa prosa cheia de estilo, fundindo com fluidez a fantasia a um ambiente urbano, sem se comprometer com finais felizes e evidenciado a veia marxista de seu autor em certos trechos específicos (Miéville é membro do Socialist Workers Party), sobretudo no epílogo, “Rei Rato” foi certamente uma de minhas melhores leituras esse ano. Seus poucos pontos negativos mal são notados, passando como ratinhos assustados (uma escolha de palavras que me parece apropriada) ao encararem a esmagadora qualidade do romance. Incomodou-me discretamente o pouquíssimo contato entre Saul e seus amigos ao longo da história, uma vez que grande parte das ações do protagonista se justificam por sua enorme preocupação com Fabian e Natasha. Por outro lado, há momentos em que Miéville se excede um pouco em todas as suas descrições. Nada disso atrapalha a leitura ou enfraquece a trama como um todo. “Rei Rato” é uma ótima experiência literária, funciona muitíssimo bem como entretenimento e nos introduz a um autor de talento indiscutível. Que venha “Perdido Street Station”.

Boas leituras.

3 comentários:

  1. Bela resenha. Eu já sou curioso no Miéville há tempos, mas ficava com um pé um pouco atrás por tentar lê-lo em inglês e não conseguir entender merda nenhuma :P Mas agora, com os livros sendo traduzidos, quem sabe eu não dê uma chance xD

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  2. Não conhecia o romance e muito menos o autor, mas sua resenha me deixou com vontade de conhecer.

    Principalmente pela história parecer reunir elementos de dois livros de meu autor favorito "Lugar Nenhum" e "Os filhos de Anansi" de Neil Gaiman.

    "Lugar Nenhum" conta a história de um cara que também passa a viver numa Londres diferente (a Londres Debaixo) e por causa disso deixou de ser notado por seus antigos amigos. Ele tem que partir numa jornada heróica para ajudar a herdeira de uma poderosa família desse reino subterrâneo a descobrir por que todos os seus familiares foram brutamente assassinados. Os ratos não são elementos centrais da narrativa, mas são bastante respeitados pelos personagens nativos da Londres Debaixo.

    "Os filhos de Anansi" conta a história de um contador londrino que, ao se notificado da morte do pai, descobre ser filho de Anansi, o senhor da histórias, um Deus africano geralmente representado em forma de aranha. Só então ele embarca numa jornada de autoconhecimento onde encontrará o irmão, bem mais sacana e habilidoso que ele, e terá que enfrentar o tigre que é o grande adversário de Anansi nas histórias.

    O primeiro livro (que já foi série de TV na BBC e também quadrinhos) tem uma pegada fantástica de drama heróico enquanto que o segundo apela mais pro lado do humor e tem sequências bem engraçadas.

    Se não conhece, vale a pena.

    Valeu!

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  3. Pô, vez por outra esbarro no Lugar Nenhum do Gaiman nas livrarias. Já tá na hora de ler algo do cara. Valeu pela dica. ;)

    E é do Gaiman um dos elogios aos Miéville contidos a quarta capa do Rei Rato. "Ficção para um novo século", diz ele.

    Abração!

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