quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Conto: TARDE DEMAIS PARA ESQUECER - Parte 1

(Conto originalmente escrito como trabalho final da disciplina Identidades Culturais na Contemporaneidade, do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense. Erros referentes ao procedimento policial e ao trabalho de perícia são de minha total responsabilidade.)


“O que você tem que entender é que eu só aceitei fazer a coisa porque estava fodido. Completamente. Não pensei direito na hora. Estava para ser despejado de casa a qualquer minuto, mal tinha dinheiro pruma refeição, meu filho não olha na minha cara e ninguém contrata gente com passagem pela polícia. Quando ele apareceu, eu estava num bar. Tinha tomado uma pinga pra afastar o frio, e estava pensando como ia fazer pra pagar. Não sei como ele chegou em mim, mas já se aproximou sabendo quem eu era e que, na minha situação, eu tava topando qualquer coisa. Mas ele me ouviu, cara. Deixou eu falar da minha vida sem interromper, olhando no olho. Quase como um amigo de anos, sabe? Eu lembro de ter pensado: ‘Ei, taí um sujeito bacana.’ Ele respeitou, falou comigo sem me ver como inferior. Por isso eu gostei dele. Acho que foi por isso que eu aceitei fazer o que ele me pediu. Quando a gente estava pra sair, ele chegou mais perto e disse que sabia que eu tava passando um aperto. E que podia me ajudar.”

“Se você matasse alguém?”

“Se eu matasse alguém.”

* * *

1

Sangue. Sangue e miolos agarrados à parede. Como um borrão de tinta numa tela branca. Foi a primeira coisa que viu quando entrou no quarto de Valter. Demorou a assimilar a cena – o vermelho denso estampado na parede, o cheiro desagradável que imperava lá dentro, mistura cigarros e livros velhos – e ficou um bom tempo paralisado na entrada, temeroso do que encontraria quando se movesse mais para dentro e um novo ângulo revelasse o que a cama agora escondia.

Deu alguns passos, engolindo em seco. Contornou a cama. O corpo estava caído e o chão empesteado de sangue. Havia roupas por toda parte. A arma – a velha arma que Valter guardava no pequeno cofre escondido na cômoda – jazia cerca de vinte centímetros da mão de seu primo, imersa. Mais tarde ele não saberia dizer quanto tempo ficou ali, piscando e tentando acordar de um sonho que não estava acontecendo. Também não saberia precisar quando as lágrimas começaram a se precipitar de seus olhos e o peito a apertar-se, como se uma mão impiedosa comprimisse seu coração.

Vinícius estendeu a mão, emergindo do transe, e pegou o celular de Valter, caído ao pé da cama. Discou e esperou e, quando atenderam, ele estranhou a voz que lhe saiu da boca; parecia estranha e distante, fraca como a de um velho, um sussurro carregado de não-ditos. Quando terminou de falar, sentou-se na cama. Olhos fixos e boca seca. Ainda estava lá, imóvel, encolhido, quando sentiu o toque no ombro e ouviu a voz que o chamava à realidade. Foi retirado. Enquanto saía, seus olhos buscaram até o último instante a poça de sangue que se alastrara por debaixo da cama, e o aroma do quarto havia se infiltrado em suas narinas de tal modo que não foi possível esquecê-lo durante muito, muito tempo.

2

A ruela fazia esquina com a avenida principal do bairro, e a vila ficava quase no final dela, espremida entre uma padaria e uma pequena agência dos Correios. O portão enferrujado estava aberto, e um policial militar postava-se na entrada, braços cruzados contra o peito e expressão de quem gostaria de estar em outro lugar. Amarante viu que tinham isso em comum. Ninguém gosta de lidar com gente morta, mas acontece. Era raro, no entanto, já abrir o plantão com um cadáver nas mãos; raro e nem um pouco animador. A madrugada é povoada por arruaças, festas barulhentas demais, problemas com bêbados, viciados, prostitutas e outros incidentes semelhantes. De vez em quando alguém morria. De vez em quando alguém era morto. De vez em quando alguém ligava dizendo que havia um cadáver no quarto, e, meu Deus, tem sangue por toda parte. Venham, venham logo.

Era por volta de meia-noite e meia. Fazia muito frio. Ele enterrou ainda mais fundo as mãos nos bolsos.

Assim que pôs os pés na vila, Amarante percebeu que já estivera ali antes. A sensação veio-lhe forte, instantânea. Ele olhou para uma das casas, tomada pela escuridão, e viu uma criança sentada no chão, examinando com atenção algo redondo entre o indicador e o polegar; um garoto de uns sete anos, moreno, que no momento seguinte projetou a mão para frente e lançou a bolinha de gude na direção do triângulo desenhado a giz mais para o centro da vila, no interior do qual outras bolas semelhantes jaziam. A bola do menino acertou uma delas, o que lhe dava o direito a uma nova tacada seguida. Amarante o viu correr mais para perto do triângulo para o novo arremate. A lembrança o paralisou. Quem era o garoto? Quando estivera ali pela última vez?

A resposta também surgiu certeira em sua mente, uma certeza inquestionável. A lembrança do menino jogando bolas de gude ficou clara. Ele prosseguiu acertando todas as outras dentro do triângulo, para desespero dos outros meninos, que de repente se viam sem suas maiores riquezas, enquanto o outro aumentava sua coleção.

O menino era ele mesmo, Augusto Amarante, anos e anos atrás, tantos que sequer se lembrara, ao receber a notícia do corpo encontrado na Vila do Rosário, de que aquele bucólico conjunto de casas certa vez fora o lar de sua família. Agora que a coisa o atingira, um sorriso brotou de imediato em seus lábios.

“Quê foi?” Era Pedro, investigador que viera com ele. Testa franzida.

“Não, é que...” Amarante ficou calado e seu sorriso morreu à medida que sua expressão se fechava. “Qual era mesmo o nome do homem morto?”

“O garoto que ligou disse que ele se chamava Valter. Porra, Amarante, que cara é essa?”

“Nada. Nada.” Ele passou por Pedro, seguindo em frente. O apalermado companheiro o seguiu até chegarem a casa número 4.

Ele se lembrou. Surpreendeu-se com isso. Fazia muito tempo. Mas algo saltou daquele espaço desordenado de sua memória onde ficava arquivado o que já fora esquecido. Aquele quintal. Belos canteiros com plantas diversas, as folhas se estendendo rente ao muro e ultrapassando-o, como se tentassem escapar. Nos fundos havia uma escada que levava à casa ao lado, uma quitinete. Foi para lá que foi conduzido pelo PM que atendera o chamado, juntamente com o que aguardava lá fora. No caminho, ao passarem pela sala, viram um jovem encolhido sobre o sofá, pernas apertadas contra o corpo, rosto escondido contra os joelhos. Pedro ficou com ele. Amarante e o PM, Gláucio, contornaram a casa e subiram as escadas. Amarante percebeu que estava tenso, um tipo novo de tensão que se diferenciava da usual.

“A coisa tá feia,” disse Gláucio, antes de entrarem.

Feia. Descrevia a cena. Amarante já vira piores. Ainda assim, não se lembrava de um nó na garganta tão apertado.

Valter. O nome lhe despertava algo de familiar. Fazia tempo, muito tempo.

3

O investigador tinha se apresentado como Augusto. Era um homem alto, magro, de cabelo castanho brilhoso jogado para trás, cavanhaque discreto e olhos muito pretos. E estava nervoso, Vinícius percebeu. Desconfortável. Tenso.

Ele se ajeitou no acento. As lágrimas já haviam secado e ele estava mais calmo. Mau se deu conta do vento gelado que entrou abruptamente e varreu a sala. O outro policial que chegara há pouco soltou um palavrão e correu para fechar a janela, subindo em seguida o zíper da jaqueta pesada até o queixo. Augusto disse:

“Quem mais mora aqui?”

“Minha mãe. Ele está de plantão no hospital. Já liguei pro celular dela.”

“Então seu primo morava aqui com vocês.”

“Sim.” Vinícius se deu conta do verbo no pretérito. É isso que acontece quando você morre: te confinam na conjugação do era, do não é mais. E logo tudo que sobra de você é essa memória turva e imprecisa de alguém que esteve aqui, que morou na quitinete dos fundos, que em certa época ocupou aquela cadeira que agora fica vazia na hora do jantar. Ele fechou os olhos e sentiu um arrepio que não teve nada a ver com o frio. De repente sentiu-se cansado, exausto, pronto para uma longa e revigorante noite de sono.

“Conte o que aconteceu.” O investigador, olhando-o fixamente.

“Ele não desceu pra jantar. Cheguei da escola umas onze horas, e vi o prato que a minha mãe tinha preparado pra ele dentro do micro-ondas, cheio. Achei estranho, porque ele sempre janta na mesma hora. Depois que eu terminei de comer, subi pra ver se ele queria que esquentasse a comida dele. Ele estava lá, daquele jeito que vocês viram.” Vinícius inconscientemente se encolheu sobre a almofada. A imagem estava vívida feito uma brasa em seus olhos. Ele pressionou as pálpebras para que fosse embora.

“Você mexeu em alguma coisa lá em cima?”

“Não. Só no celular. Peguei o celular dele e liguei pra vocês.”

“Quando você chegou, a casa estava aberta? Alguma coisa fora do lugar, algum sinal de confusão?”

Vinícius se sentiu confuso. “O quê?”

“Você viu algo de suspeito? Ouviu alguma coisa? O tiro?”

“Não. Não vi nada. Não ouvi nada. O portão e a porta estavam trancados quando eu cheguei. Estava tudo no lugar.”

Os três policiais trocaram olhares. O investigador que dissera se chamar Pedro e que fechara a janela estava de pé a sua frente, as costas apoiadas na parede, e logo voltou a concentrar-se detidamente nele. Vinícius teve a sensação de que, se o menor dos músculos de seu rosto se mexesse, aquele cara notaria.

“Então você chegou, jantou, foi subir para falar com seu primo e o encontrou lá?”

“Assisti um pouco de televisão enquanto comia.”

“Ah. Bem, apenas ratificando: nada de anormal quando você chegou; nenhum barulho estranho ou suspeito, nada que parecesse um tiro; ninguém veio procurar Valter enquanto você comia. Certo?”

“Sim,” Vinícius disse. “Ele só estava lá. Só estava lá, caído.” Ele fixou os olhos pesados no chão.

“Onde você estuda, rapaz?”

Demorou a responder. Era uma sonolência que ele não sabia de onde saíra, e que retardava seus pensamentos. O investigador a sua frente se impacientou e estalou os dedos, como se quisesse despertá-lo.

“O quê? Desculpe.” Passou a mãos pelo rosto. “Fiquei cansado, de uma hora para outra.”

“Tudo bem. Então: onde você estuda?”

Ele deu o nome de um colégio estadual da região.

“À que horas saiu de lá?”

“Umas dez, quinze para as onze.”

Houve um breve silêncio. Vinícius se perguntou se eles checariam se aquelas informações eram verdadeiras. Ele queria que acabassem ali, que o deixassem em paz. Queria dormir e acordar e esquecer que aquilo tinha acontecido. O cheiro do quarto de Valter impregnava suas narinas e o nauseava.

“O que a sua mãe disse?”

“Que ia tentar sair mais cedo. O plantão dela só termina de manhã.”

Augusto parecia refletir para ver se não tinha se esquecido de nada. Vinícius esperou.

“Aquela arma, você já a viu antes?”

“Não.”

“Ele parecia estranho nos últimos dias? Algum comportamento fora do incomum, mais agressivo, mais calado?”

“Normal.” Um leve sacudir de ombros.

Viu que a resposta irritou Augusto; problema dele. Não ia ficar se forçando a formular respostas maiores e detalhadas só para agradar polícia.

“É só isso? Ele simplesmente estava ‘normal’?” O policial sinalizou um par de aspas no ar.

“É. Isso.”

Ele ia dizer alguma coisa, provavelmente algo rude, mas o telefone tocou no momento seguinte, interrompendo o que quer que fosse. Vinícius estendeu a mão e pegou o fone de cima da mesinha ao lado do sofá. Disse um “alô” preguiçoso. Era sua mãe. Assim que ouviu a voz dela, estendeu o aparelho na direção do investigador, dizendo quem era. Quando Augusto levou o fone ao ouvido, Vinícius se levantou, cruzou a sala, passou pela cozinha e entrou no banheiro. Encarou o próprio rosto no espelho. Havia algo de errado, ele sabia. Algo que estava faltando. E ele localizou esse algo enquanto corria os olhos pelas marcas das lágrimas que chorara mais cedo. Tinham sido poucas, e ele jamais pensaria que viria a derramar alguma numa ocasião como aquela; então por quê?

Decidiu: havia chorado porque algo dele se fora junto com Valter. Não fora por tristeza. Tristeza era justo o que estava faltando. Era tudo que ele não estava sentindo. Ele estava tranquilo, sereno, em paz. Um pequeno sorriso sinalizou em seus lábios durante um segundo, não mais que isso, e então saiu dali. Da curva da cozinha para a sala, ouviu vozes, e, quando estava novamente naquele aposento, viu que mais gente tinha chegado para fazer-lhes companhia.

* * *

“Eu não disse sim de cara. Porra, só se eu fosse um maluco. Mas ele insistiu. Acabou conseguindo me convencer. Me deu a arma. E dois mil reais. Disse que depois do serviço, eu ia ganhar mais oito. Não me olha com essa cara. Você não entende, não tem ideia do que é estar na situação que eu estava, quase tendo que mendigar! Isso não justifica, mas, porra, tira esse olhar do rosto, como se eu fosse merda. Eu sou gente. Eu sou gente, porra.”

“Sim. Um ser humano que matou outro.”

“Porque eu precisei.”

“Não quero saber. Continua.”

“Ele me deu as instruções. Eu tinha que vir pelo terreno baldio que dá na avenida e subir pela árvore que dava na janela do quarto do cara. Era assim que ele se referia à pessoa que eu tinha que matar, sempre o cara. Ele disse que a janela estaria aberta, e que a pessoa estaria lá dentro, provavelmente sentada numa escrivaninha. Perguntei como ele podia garantir essas coisas, e ele respondeu dizendo que ia me dar as respostas na hora certa. Marcou o dia e a hora. Tinha mais duas pessoas morando na casa principal, e elas não podiam estar lá quando eu chegasse. No dia combinado, ele me ligou. Eu estava nervoso. Estava quase na hora. Ele disse: ‘Nós temos um acordo. Um pacto. Você tem um trabalho a fazer. Anda, vá logo. Vai ficar tudo bem. Eu garanto. Vá fazer o que você tem que fazer.’”


Continua...


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